Observo que o benefício da justiça gratuita já foi deferido em segundo grau, em decisão monocrática de 24/02/
(ID 23210574). Assim, o recurso prescinde de preparo. A questão do indeferimento da gratuidade da justiça pela sentença de primeiro grau será analisada no mérito, como parte da discussão sobre a anulação da decisão recorrida. Dito isso, passo à análise do mérito recursal, o qual entendo ser passível de decisão monocrática, conforme o Art. 932, inciso IV, alínea "a", do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão recorrida se mostra contrária à jurisprudência consolidada deste e. Tribunal de Justiça. A controvérsia cinge-se à legalidade da extinção do processo por suposta litigância predatória sem a prévia oportunização de emenda à inicial. É imperioso ressaltar o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição, assegurado pelo Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
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poder judiciário tribunal de justiça do estado do piauí GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA PROCESSO Nº: 0801122-59.2024.8.18.0046 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) ASSUNTO(S): [Empréstimo consignado] APELANTE: MARIA DE FATIMA DE SOUSA VIEIRAAPELADO: BANCO CETELEM S.A. DECISÃO MONOCRÁTICA EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO CONTRATUAL. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. ALEGAÇÃO DE LITIGÂNCIA PREDATÓRIA. INOPORTUNIDADE DE EMENDA À PETIÇÃO INICIAL (ART. 321 DO CPC). VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO (ART. 5º, XXXV, CF) E DA NÃO SURPRESA (ART. 10 DO CPC). NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE MÁ-FÉ. PRECEDENTES DO TJPI. SENTENÇA ANULADA. JUSTIÇA GRATUITA. BENEFÍCIO JÁ DEFERIDO EM SEGUNDO GRAU. REANÁLISE PELO JUÍZO DE ORIGEM QUANTO AO MÉRITO DA GRATUIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO MONOCRATICAMENTE. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO. I. CASO EM EXAME Apelação Cível interposta por Maria de Fátima de Sousa Vieira contra sentença que extinguiu o processo, sem resolução do mérito, com fundamento nos arts. 330, III, e 485, VI, do CPC, e indeferiu a gratuidade da justiça. A ação originária, ajuizada contra o Banco Cetelem S.A. (incorporado pelo Banco BNP Paribas Brasil S.A.), visava à declaração de inexistência de contrato de empréstimo consignado, repetição do indébito em dobro e indenização por danos morais. O juízo de origem considerou a demanda exemplo de “litigância predatória”, por apresentar similitude com outras ações da mesma autora, e determinou a expedição de ofícios a diversos órgãos. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Há duas questões em discussão: (i) definir se é legítima a extinção do processo por suposta litigância predatória sem prévia oportunidade de emenda à inicial; (ii) estabelecer se o indeferimento da gratuidade da justiça se sustenta diante da hipossuficiência da parte. III. RAZÕES DE DECIDIR O direito fundamental de acesso à justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da CF, impede a extinção prematura do feito sem a devida oportunidade de manifestação da parte. O art. 321 do CPC impõe ao juiz o dever de oportunizar emenda à inicial antes de extinguir o processo, sob pena de violação ao princípio da não surpresa (art. 10 do CPC). A mera multiplicidade de ações semelhantes não configura, por si só, litigância predatória ou má-fé, sendo necessária a demonstração de dolo específico (TJPI, Apelação Cível nº 0803261-25.2023.8.18.0076). A presunção de boa-fé é regra, especialmente em se tratando de consumidor idoso e hipossuficiente, alvo recorrente de fraudes em contratos bancários. O indeferimento da gratuidade da justiça perde eficácia diante de sua concessão em segundo grau, devendo o juízo de origem reavaliar o benefício no regular processamento do feito. IV. DISPOSITIVO E TESE Recurso provido. Sentença anulada. Tese de julgamento: O juiz deve oportunizar a emenda da inicial antes de extinguir o processo por suposta litigância predatória. A multiplicidade de ações similares não configura, por si só, litigância de má-fé, sendo necessária a prova do dolo. O indeferimento da gratuidade da justiça deve observar a hipossuficiência da parte e pode ser revisto no curso do processo. Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 5º, XXXV; CPC, arts. 10, 321, 330, III, 485, VI, 932, IV, "a"; CDC, art. 6º, VIII. Jurisprudência relevante citada: TJPI, Apelação Cível nº 0000784-15.2016.8.18.0074, Rel. Des. Raimundo Eufrásio Alves Filho, j. 05.08.2022. TJPI, Apelação Cível nº 0800543-18.2023.8.18.0056, Rel. Des. José Ribamar Oliveira, j. 19.04.2024. TJPI, Apelação Cível nº 0803261-25.2023.8.18.0076, Rel. Des. Haroldo Oliveira Rehem, j. 07.11.2024. TJPI, Apelação Cível nº 0807451-21.2022.8.18.0026, Rel. Des. Aderson Antonio Brito Nogueira, j. 01.03.2024. TJPI, Apelação Cível nº 0803271-73.2021.8.18.0065, Rel. Des. Ricardo Gentil Eulálio Dantas, j. 26.04.2024. RELATÓRIO Trata-se de recurso de Apelação Cível interposto por MARIA DE FATIMA DE SOUSA VIEIRA contra sentença proferida pela Vara Única da Comarca de Cocal, que extinguiu o processo sem resolução do mérito, com fundamento no art. 330, inciso III, e no art. 485, inciso VI, ambos do Código de Processo Civil (CPC), e indeferiu o pedido de gratuidade da justiça. A ação originária, protocolada sob o número 0801122-59.2024.8.18.0046, versa sobre Empréstimo consignado e foi proposta pela Apelante em face do BANCO CETELEM S.A., que, conforme aduzido nas contrarrazões, foi incorporado pelo Banco BNP Paribas Brasil S.A. (ID 23191675). A Autora/Apelante alegou desconhecer um contrato de empréstimo consignado de nº 51-521251/15310, no valor de R$ 982,00, com parcelas mensais de R$ 30,00, totalizando R$ 2.160,00 descontados de seu benefício previdenciário (ID 23191662 - p. 3). Requereu a declaração de inexistência/nulidade do contrato, a repetição do indébito em dobro e indenização por danos morais. A petição inicial foi instruída com documentos pessoais e declaração de hipossuficiência, tendo a Certidão de Triagem Positiva atestado a regularidade da documentação (ID 23191669 e ID 23191671 – p. 4). A sentença de primeiro grau fundamentou a extinção do feito na ocorrência de "abuso de direito" e "litigância predatória", ante o ajuizamento de outras ações pela mesma parte contra o mesmo requerido, com petições iniciais consideradas genéricas e idênticas, sem individualização do caso concreto. Citou, inclusive, a existência de outro processo (0801110-45.2024.8.18.0046) com a mesma causa de pedir e pedido, e o teor da Nota Técnica nº 06 do TJPI sobre demandas predatórias. A decisão de primeiro grau também oficiava diversos órgãos, como OAB/PI, NUGEPNAC, CIJEPI, Ministério Público Estadual e Federal, e CNJ, em razão dos indícios de "crime contra a ordem econômica e financeira" (ID 23191670). Inconformada, a Apelante interpôs o presente recurso de apelação. Em suas razões recursais, arguiu a tempestividade do apelo e reiterou o pedido de concessão da gratuidade da justiça, alegando sua condição de beneficiária de renda mínima e hipossuficiente. No mérito, pugnou pela reforma da sentença, aduzindo que a extinção por ausência de interesse processual se baseou apenas na multiplicidade de ações, sem considerar que, embora similares, as demandas referem-se a contratos distintos. Enfatizou que a “Certidão de Triagem Positiva” comprovou a regularidade da documentação anexada à inicial e que o magistrado não concedeu a oportunidade para emendar a inicial, conforme o artigo 321 do CPC. A Apelante citou jurisprudência deste Tribunal de Justiça (APELAÇÃO CÍVEL Nº 0803261-25.2023.8.18.0076), no sentido de que a "mera multiplicidade de ações não é causa, por si só, de advocacia predatória". Argumentou ainda que o aumento das fraudes bancárias justifica o volume de ações, e que a presunção de má-fé deve ser provada, não presumida. Por fim, requereu o provimento do recurso para anular a sentença e determinar o retorno dos autos à primeira instância para o regular processamento (ID 23191671). O BANCO CETELEM S.A., ora Banco BNP Paribas Brasil S.A., apresentou contrarrazões, nas quais pugnou pela retificação do polo passivo em razão da incorporação, e defendeu a manutenção da sentença de extinção, reiterando a tese de litigância predatória. Mencionou estudos e notas técnicas que apontam o prejuízo gerado por tal prática ao Judiciário, reforçando que a "enxurrada de ações" com a mesma formatação e pedidos genéricos indica "captação indevida" e abuso do direito de peticionar (ID. 23191675). É o relatório. FUNDAMENTAÇÃO Inicialmente, Inicialmente, cumpre ressaltar que o recurso de Apelação Cível interposto preenche os requisitos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, razão pela qual deve ser CONHECIDO. Importa destacar que a tempestividade já foi certificada ao ID 23191672. A representação processual está regular. No tocante ao preparo, a Apelante reiterou o pedido de gratuidade da justiça. Observo que o benefício da justiça gratuita já foi deferido em segundo grau, em decisão monocrática de 24/02/2025 (ID 23210574). Assim, o recurso prescinde de preparo. A questão do indeferimento da gratuidade da justiça pela sentença de primeiro grau será analisada no mérito, como parte da discussão sobre a anulação da decisão recorrida. Dito isso, passo à análise do mérito recursal, o qual entendo ser passível de decisão monocrática, conforme o Art. 932, inciso IV, alínea "a", do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão recorrida se mostra contrária à jurisprudência consolidada deste e. Tribunal de Justiça. A controvérsia cinge-se à legalidade da extinção do processo por suposta litigância predatória sem a prévia oportunização de emenda à inicial. É imperioso ressaltar o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição, assegurado pelo Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Este direito garante a todos o acesso ao Poder Judiciário para a apreciação de lesão ou ameaça a direito. Como bem asseverado na jurisprudência do TJPI, "O interesse processual existe independente de prévio requerimento administrativo, baseado na garantia constitucional de ação e acesso ao Poder Judiciário, previsto no art. 5°, XXXV da Constituição Federal da República, inexistindo obrigação da Apelante pleitear ou esgotar a via administrativa antes de ingressar na via judicial" (Apelação Cível - 0000784-15.2016.8.18.0074, Relator: Raimundo Eufrásio Alves Filho, 1ª Câmara Especializada Cível, julgado em 05/08/2022). A sentença de primeiro grau pautou-se na alegação de litigância predatória, decorrente da similaridade de petições e multiplicidade de ações. Contudo, o Código de Processo Civil, em seu Art. 321, estabelece que, ao verificar defeitos ou irregularidades na petição inicial, o juiz deve determinar que o autor a emende ou complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido. A inobservância desta regra processual configura violação ao princípio da não surpresa, insculpido no Art. 10 do CPC. A “Certidão de Triagem Positiva”, anexada aos autos (ID 23191669), demonstra que a petição inicial e seus documentos estavam, a princípio, regulares e legíveis, não havendo indicação de qualquer intimação para emenda da inicial antes da prolação da sentença de extinção. Tal ausência de oportunidade de saneamento do processo é um vício processual grave. Conforme precedente deste TJPI, "O art. 10 do Código de Processo Civil prescreve regra de observância obrigatória, segundo a qual o julgador não pode decidir, em grau de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício" (Apelação Cível - 0800543-18.2023.8.18.0056, Relator: José Ribamar Oliveira, 4ª Câmara Especializada Cível, julgado em 19/04/2024). Embora este Tribunal reconheça a importância do combate à litigância predatória, como evidenciado pelas Súmulas 33 e 34 do TJPI (aprovadas na 141ª Sessão Ordinária Administrativa em 15/07/2024), que validam a exigência de documentos e a designação de audiências em caso de fundada suspeita, essas medidas são ferramentas para o juiz conduzir o processo, e não para negar o acesso à justiça sem a devida oportunização. Ademais, a caracterização da litigância de má-fé exige a demonstração de dolo específico. A mera multiplicidade de ações, por si só, não é suficiente para configurar a má-fé, especialmente quando se trata de partes vulneráveis. Este e. TJPI já decidiu que "A mera multiplicidade de ações não é causa, por si só, de advocacia predatória" (APELAÇÃO CÍVEL, n° 0803261-25.2023.8.18.0076, Órgão julgador colegiado: 1ª Câmara Especializada Cível; RELATOR(A): Desembargador HAROLDO OLIVEIRA REHEM, julgado em 07/11/2024). No caso concreto, a Apelante é pessoa idosa e beneficiária de renda mínima. A própria Apelante alegou que as ações referem-se a diferentes contratos, o que é plausível dado o cenário de fraudes bancárias contra idosos. Exigir que um consumidor prove um fato negativo (a inexistência de contrato) é um ônus desproporcional. A inversão do ônus da prova em favor do consumidor hipossuficiente é plenamente aplicável em contratos bancários, conforme Súmula 26 do TJPI : "Nas causas que envolvem contratos bancários, aplica-se a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (CDC, art, 6º, VIII) desde que comprovada sua hipossuficiência em relação à instituição financeira, entretanto, não dispensa que o consumidor prove a existência de indícios mínimos do fato constitutivo de seu direito, de forma voluntária ou por determinação do juízo" e a Súmula 297 do STJ. A presunção de boa-fé é a regra, e a má-fé deve ser provada, não presumida. "Aplicar a multa de litigância de má-fé impugnada, consistiria em restringir de maneira injustificada o acesso à jurisdição" (Apelação Cível - 0807451-21.2022.8.18.0026, Relator: Aderson Antonio Brito Nogueira, 1ª Câmara Especializada Cível, julgado em 01/03/2024). Similarmente, "O simples fato de a Autora ter questionado a regularidade da contratação não é justificativa para a penalidade imposta, e deve-se considerar que a Requerente é beneficiária de renda mínima da Previdência Social, sendo crível o argumento de que poderia ter sido vítima de fraude em empréstimos consignados em seu benefício previdenciário. Litigância de má-fé afastada" (Apelação Cível - 0803271-73.2021.8.18.0065, Relator: Ricardo Gentil Eulálio Dantas, 3ª Câmara Especializada Cível, julgado em 26/04/2024). Dessa forma, a extinção prematura do processo, sem a devida oportunização para a emenda da inicial ou para que a parte se manifeste sobre os supostos indícios de litigância predatória, cerceia o direito de defesa e o acesso à justiça. Quanto ao indeferimento da gratuidade da justiça pela sentença, essa questão está intrinsecamente ligada à anulação da decisão. Tendo o benefício sido deferido em segundo grau (ID 23210574), o juízo de origem deverá, ao retomar o processamento, reavaliar a pertinência da concessão para o trâmite processual como um todo, observando o Art. 99, §2º, do CPC. Em face de todo o exposto, considerando que a sentença proferida pelo juízo de primeiro grau contraria a legislação processual e a jurisprudência consolidada deste Tribunal de Justiça, impõe-se a sua anulação para que o processo retorne à origem e prossiga regularmente. DISPOSITIVO Por todo o exposto, com fundamento no Art. 932, inciso IV, alínea "a", do Código de Processo Civil, e nos precedentes jurisprudenciais deste e. Tribunal de Justiça, CONHEÇO da Apelação Cível interposta por MARIA DE FATIMA DE SOUSA VIEIRA e a ela DOU PROVIMENTO MONOCRATICAMENTE para: ANULAR a sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Cocal (ID 23191670), por ofensa ao Art. 321 do CPC e ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. DETERMINAR o retorno dos autos à instância de origem para que se proceda ao regular processamento do feito, oportunizando-se à parte Apelante, se for o caso, a emenda da inicial, e reavaliando-se o pedido de gratuidade da justiça nos termos da legislação e da fundamentação desta decisão, antes de qualquer juízo terminativo. Deixo de arbitrar honorários recursais, por se tratar de anulação da sentença, não havendo sucumbência final neste grau de jurisdição. Comunique-se. Intime-se. TERESINA-PI, 1 de setembro de 2025.
(TJPI -
APELAÇÃO CÍVEL
0801122-59.2024.8.18.0046 -
Relator: ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA -
1ª Câmara Especializada Cível
- Data 01/09/2025
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