Decisão Terminativa de 2º Grau

Empréstimo consignado 0801420-51.2024.8.18.0046


Decisão Terminativa

poder judiciário 
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

PROCESSO Nº: 0801420-51.2024.8.18.0046
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Empréstimo consignado]
APELANTE: MARIA DO REMEDIO CARDOSO PEREIRA
APELADO: BANCO PAN S.A.


JuLIA Explica

DECISÃO TERMINATIVA

 

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO CONTRATUAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO EM PRIMEIRO GRAU. FUNDAMENTO DE "LIDE TEMERÁRIA" E "ABUSO DO DIREITO DE PETICIONAR". VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E AO PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA. AUSÊNCIA DE OPORTUNIDADE PARA SANEAMENTO OU MANIFESTAÇÃO PRÉVIA. INOBSERVÂNCIA DO ART. 321 DO CPC E SÚMULAS DO TJPI. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO DO ADVOGADO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NA MESMA AÇÃO. NULIDADE DA SENTENÇA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

 

RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Cível (Processo nº 0801420-51.2024.8.18.0046) interposta por MARIA DO REMEDIO CARDOSO PEREIRA contra a sentença (ID 23255384) proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Cocal, que, nos autos da Ação Declaratória de Inexistência de Relação Contratual c/c Pedido de Repetição do Indébito e Indenização por Danos Morais ajuizada em face do BANCO PAN S.A., extinguiu o processo sem resolução de mérito, com fulcro no Art. 330, inciso III, e Art. 485, inciso VI, do Código de Processo Civil.

A ação originária visava à declaração de inexistência de um contrato de cartão de crédito consignado, à restituição em dobro dos valores supostamente descontados indevidamente e à indenização por danos morais, sob a alegação de que a autora, pessoa idosa, não reconhecia a contratação e não havia solicitado ou recebido os valores.

A sentença de primeiro grau fundamentou a extinção na caracterização de "lide temerária" e "abuso do direito de peticionar", por entender que a parte autora agiu de forma desarrazoada ao ajuizar ações contra a mesma parte, sem individualização do caso ou ocorrência fática precisa, tratando-se de mera repetição de petições iniciais genéricas. Adicionalmente, indeferiu o pedido de gratuidade da justiça e condenou a parte autora em custas processuais e honorários advocatícios.

Inconformada, a apelante interpôs o presente recurso (ID 23255385), sustentando, em síntese, que não houve "lide temerária" ou abuso, pois a petição inicial é acompanhada de procuração e documentos pessoais, e que a sentença violou os princípios da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça ao extinguir o feito sem prévia análise da documentação ou oportunidade de emenda da inicial. Contesta o indeferimento da justiça gratuita, reiterando sua hipossuficiência.

O apelado apresentou contrarrazões (ID 23255386), pugnando pela manutenção da sentença, reiterando os argumentos de "lide temerária", abuso do direito de litigar e ausência de comprovação do direito da autora. Defende a condenação por litigância de má-fé da apelante e de seu patrono, e alega, preliminarmente, a inexistência de citação em primeiro grau.

Em Despacho (ID 23973492), foi determinada a intimação da apelante para comprovar o preenchimento dos pressupostos legais para a obtenção dos benefícios da justiça gratuita, o que foi cumprido pela parte (ID 24209334).

É o relatório. DECIDO.

 

FUNDAMENTAÇÃO

A controvérsia recursal cinge-se à análise da validade da sentença de primeiro grau que extinguiu o processo sem resolução de mérito, sob o fundamento de "lide temerária" e "abuso do direito de peticionar", bem como o indeferimento da justiça gratuita e a condenação em custas e honorários.


1. Da Nulidade da Sentença por Violação ao Contraditório e à Não Surpresa (Arts. 10 e 321 do CPC)

A Constituição Federal, em seu Art. 5º, inciso LV, assegura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processo judicial. Em consonância com este preceito, o Código de Processo Civil de 2015, em seu Art. 10, consagra o princípio da não surpresa, vedando ao juiz decidir, em qualquer grau de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

No caso em análise, a sentença de primeiro grau (ID 23255384), ao extinguir o processo sem resolução de mérito sob o fundamento de "lide temerária" e "abuso do direito de peticionar", não oportunizou à apelante manifestação prévia sobre a conduta imputada. Embora o juízo possa coibir o abuso do direito de litigar, a aplicação de penalidades deve ser precedida de oportunidade de defesa sobre a conduta processual.

O Art. 321 do CPC é claro ao estabelecer o dever do juiz de oportunizar a emenda da petição inicial quando esta não preenche os requisitos ou apresenta defeitos. A inobservância deste dispositivo configura cerceamento de defesa e violação ao princípio da não surpresa, tornando a decisão nula. A Certidão de Triagem (ID 23255382) apontou questões como ausência de comprovante de residência e assinaturas na procuração/declaração de hipossuficiência, mas a sentença optou pela extinção direta, sem conceder prazo para saneamento.

Este Tribunal de Justiça do Piauí possui entendimento consolidado sobre a matéria, inclusive por meio de súmulas que orientam o saneamento do processo em casos de suspeita de demanda repetitiva ou irregularidades em procurações. A Súmula 33 do TJPI expressamente valida a exigência de documentos em casos de fundada suspeita de demanda predatória, mas, crucialmente, remete ao Art. 321 do Código de Processo Civil. Isso significa que, mesmo diante de tais suspeitas, a via processual adequada é a concessão de prazo para emenda da inicial, e não a extinção imediata do feito sem essa oportunidade. (TJPI, Súmula 33)

Ademais, a Súmula 34 do TJPI oferece uma via processual alternativa para o saneamento de dúvidas sobre a validade do mandato em casos de suspeita de demanda predatória: a designação de uma audiência para ratificação. A opção do juízo de primeiro grau pela extinção direta, sem recorrer a esta medida que poderia ter sanado a suposta irregularidade do mandato, reforça a violação ao devido processo legal. (TJPI, Súmula 34)

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona ao reconhecer a nulidade de decisões que surpreendem as partes com fundamentos não debatidos previamente, violando o Art. 10 do CPC:

"É nula a decisão que não observa as garantias da segurança jurídica, do contraditório e do devido processo legal. Todas as partes processuais, interessadas no resultado do feito, devem ter efetiva oportunidade de participar do debate a respeito dos fundamentos relevantes para a formação do convencimento do julgador. Vedação à decisão surpresa (arts. 10 e 933, caput, do CPC)." (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp: 2049625 SP, Relator: RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 22/05/2023, Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 25/05/2023)

Este entendimento é corroborado pelo TJPI, em virtude da ausência de oportunidade de saneamento ou manifestação das partes, senão vejamos:

"Há cerceamento de defesa quando o magistrado proferir julgamento antecipado da lide, contrário ao interesse da parte, com fundamento na ausência de prova de suas alegações." (TJPI, Apelação Cível: 0800434-57.2023.8.18.0103, Relator: AGRIMAR RODRIGUES DE ARAUJO, Data de Julgamento: 26/02/2025, 3ª Câmara Especializada Cível, Data de Publicação: 26/02/2025)

A sentença de primeiro grau, ao extinguir o processo sem conceder à parte autora a oportunidade de sanar os vícios apontados ou de se manifestar sobre os fundamentos da extinção, violou flagrantemente o Art. 10 e o Art. 321 do CPC, bem como as súmulas e o entendimento dominante deste Tribunal e dos Tribunais Superiores.


2. Da Condenação por Litigância de Má-Fé da Parte

A sentença de primeiro grau indeferiu a justiça gratuita e condenou a parte autora em custas e honorários, com base na premissa de "lide temerária". O apelado, em contrarrazões, requer a condenação por litigância de má-fé.

Este Tribunal tem se posicionado firmemente contra o abuso do direito de litigar, caracterizando-o como litigância de má-fé:

"A alteração da verdade dos fatos e o uso do processo para objetivo ilegal configuram litigância de má-fé, sendo legítima a aplicação de multa nos termos do art. 81 do CPC." (TJPI, APELAÇÃO CÍVEL: 0800148-26.2024.8.18.0077, Relator: HAROLDO OLIVEIRA REHEM, Data de Julgamento: 20/03/2025, 1ª Câmara Especializada Cível, Data de Publicação: 20/03/2025)

"O ajuizamento de demandas predatórias, caracterizadas por teses genéricas em massa, prejudica o contraditório, a ampla defesa e a celeridade processual, comprometendo o funcionamento do Judiciário." (TJPI, APELAÇÃO CÍVEL: 0801799-78.2023.8.18.0061, Relator: José James Gomes Pereira, Data de Julgamento: 20/03/2025, 2ª Câmara Especializada Cível, Data de Publicação: 20/03/2025)

Contudo, a análise da conduta da parte e a imposição de penalidade por litigância de má-fé exigem a observância do devido processo legal, com a prévia oportunidade de manifestação da parte sobre a conduta imputada. A ausência dessa oportunidade prévia, conforme já exposto, configura cerceamento de defesa e nulidade processual.


3. Da Responsabilidade Solidária do Advogado

O apelado, em suas contrarrazões, ataca a conduta do patrono da apelante e requer providências. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado no sentido de que as penalidades por litigância de má-fé, previstas no Código de Processo Civil, são dirigidas às partes, e não ao advogado. A responsabilidade do profissional da advocacia deve ser apurada em ação própria ou perante o órgão de classe (OAB).

"As penas por litigância de má-fé, previstas nos artigos 79 e 80 do CPC de 2015, são endereçadas às partes, não podendo ser estendidas ao advogado que atuou na causa, o qual deve ser responsabilizado em ação própria, consoante o artigo 32 da Lei 8.906/1994." (STJ, AgInt no AREsp: 1722332 MT 2020/0159573-3, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 13/06/2022, Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 21/06/2022)

Portanto, qualquer imputação de responsabilidade ao advogado na sentença de primeiro grau diverge do entendimento dominante do STJ, devendo ser afastada.


4. Do Benefício da Justiça Gratuita

A apelante reiterou o pedido de justiça gratuita e apresentou documentos após o Despacho deste Gabinete. Diante da anulação da sentença e o retorno dos autos à origem, a análise da hipossuficiência da parte para fins de concessão ou manutenção do benefício da justiça gratuita deverá ser realizada pelo juízo de primeiro grau, após a devida instrução processual, se necessário.

Diante da nulidade processual insanável, impõe-se a anulação da sentença e o retorno dos autos à origem para o devido saneamento e prosseguimento do feito, incluindo a regular citação do réu.


DISPOSITIVO

Diante do exposto, com fulcro no Art. 932, inciso V, alínea “a”, do Código de Processo Civil, CONHEÇO do recurso de apelação e DOU-LHE PROVIMENTO para ANULAR A SENTENÇA de primeiro grau (ID 23255384), determinando o RETORNO DOS AUTOS À VARA DE ORIGEM para que seja oportunizada à parte autora a manifestação sobre a conduta processual imputada e o regular prosseguimento do feito, com a devida citação do réu.

 

Sem condenação em custas e honorários recursais, dada a anulação da sentença.

 

Publique-se. Intimem-se.

 

CUMPRA-SE.

 

TERESINA-PI, 1 de setembro de 2025.

 

 

Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Relator
(TJPI - APELAÇÃO CÍVEL 0801420-51.2024.8.18.0046 - Relator: ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA - 1ª Câmara Especializada Cível - Data 01/09/2025 )

Detalhes

Processo

0801420-51.2024.8.18.0046

Órgão Julgador

Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

Órgão Julgador Colegiado

1ª Câmara Especializada Cível

Relator(a)

ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

Classe Judicial

APELAÇÃO CÍVEL

Competência

Câmaras Cíveis

Assunto Principal

Empréstimo consignado

Autor

MARIA DO REMEDIO CARDOSO PEREIRA

Réu

BANCO PAN S.A.

Publicação

01/09/2025