poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
PROCESSO Nº: 0802059-03.2024.8.18.0068
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Defeito, nulidade ou anulação, Indenização por Dano Moral, Empréstimo consignado, Repetição do Indébito]
APELANTE: ANTONIA ROSA DE LIMA
APELADO: BANCO BRADESCO S.A.
DECISÃO MONOCRÁTICA
Ementa
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. CONSUMIDORA IDOSA E ANALFABETA FUNCIONAL. RELAÇÃO DE CONSUMO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA (CDC, ART. 6º, VIII). AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA EFETIVA DISPONIBILIZAÇÃO DO VALOR DO EMPRÉSTIMO NA CONTA DA MUTUÁRIA PELO BANCO. NULIDADE DO CONTRATO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 18 DO TJPI. CONTRATO FIRMADO COM PESSOA ANALFABETA. AUSÊNCIA DE FORMALIDADES ESSENCIAIS (SÚMULA 30 DO TJPI). FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DESCONTOS INDEVIDOS. REPETIÇÃO DO INDÉBITO EM DOBRO (CDC, ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO). DANO MORAL IN RE IPSA CONFIGURADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO FIXADO EM CONSONÂNCIA COM OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE E PRECEDENTES DESTA CORTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. DECISÃO MONOCRÁTICA.
Relatório
Trata-se de Apelação Cível interposta por ANTONIA ROSA DE LIMA (Apelante), qualificada nos autos, contra a sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Porto – PI, que, nos autos da Ação Declaratória de Inexistência de Débito c/c Repetição de Indébito e Indenização por Danos Morais (Processo nº 0802059-03.2024.8.18.0068), ajuizada em desfavor do BANCO BRADESCO S.A. (Apelado), julgou TOTALMENTE IMPROCEDENTES os pedidos formulados na exordial.
Em sua petição inicial (ID 27229665), a Apelante narrou que, ao consultar seu benefício previdenciário, verificou a existência de descontos mensais no valor de R$ 146,65, referentes a um contrato de empréstimo consignado (nº 0123457301731, no valor de R$ 5.892,02), com início em maio de 2022. Afirmou que jamais contratou ou autorizou tal empréstimo, tampouco recebeu qualquer valor correspondente. Destacou sua condição de pessoa idosa e analfabeta funcional, o que, segundo a legislação e a jurisprudência, exigiria formalidades específicas para a validade do contrato, como a assinatura a rogo ou por instrumento público, as quais não foram observadas. Requereu, assim, a declaração de inexistência do débito, a condenação do Banco à repetição em dobro dos valores indevidamente descontados (totalizando R$ 4.252,85 até a propositura da ação), e a fixação de indenização por danos morais no importe de R$ 5.000,00.
Devidamente citado, o Banco Bradesco S.A. apresentou contestação (ID 27229689), arguindo, preliminarmente, a irregularidade da procuração e a ocorrência de litigância predatória em razão de suposto fracionamento de ações. No mérito, defendeu a regularidade e validade do contrato, sustentando que a Apelante teria firmado o empréstimo eletronicamente e usufruído do valor, agindo de má-fé. Juntou aos autos uma imagem de um contrato eletrônico com os dados do empréstimo (ID 27229689, pág. 20) e extratos bancários da conta da Apelante (IDs 27229675 a 27229680). Pugnou pela improcedência dos pedidos e pela condenação da Apelante e de seu patrono por litigância de má-fé.
A Apelante apresentou réplica (ID 27229698), refutando as preliminares e reiterando seus argumentos iniciais. Enfatizou a ausência de contrato assinado e, principalmente, a falta de comprovante de transferência eletrônica (TED) do valor do empréstimo para sua conta, citando as Súmulas 18 e 26 do TJ-PI como fundamento para a nulidade da contratação.
A sentença de primeiro grau (ID 27229701) afastou as preliminares e prejudiciais de mérito, reconhecendo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e a inversão do ônus da prova. Contudo, no mérito, julgou os pedidos totalmente improcedentes, sob o fundamento de que "foi juntado aos autos comprovação do contrato questionado e disponibilidade do crédito" e que "consta informação de que foi liberado o valor do contrato de empréstimo a favor da parte autora mediante TED, comprovando o efetivo recebimento do valor do empréstimo".
Inconformada com a decisão, a Apelante interpôs o presente recurso de Apelação (ID 27229702), reiterando a tese de que o Banco não comprovou a regularidade da contratação, especialmente a ausência de sua assinatura no contrato e a falta de prova da efetiva disponibilização do valor do empréstimo. Requereu a reforma da sentença para que sejam declarados nulos os descontos, com a repetição em dobro dos valores e a condenação do Banco ao pagamento de indenização por danos morais.
O Apelado apresentou contrarrazões (ID 27229705), pugnando pela manutenção da sentença e reiterando os argumentos de sua contestação.
É o relatório. Decido.
Fundamentação
A presente Apelação Cível comporta julgamento monocrático, nos termos do artigo 932, inciso V, do Código de Processo Civil, porquanto a sentença recorrida se mostra manifestamente contrária à súmula e à jurisprudência dominante deste Tribunal de Justiça e dos Tribunais Superiores, especialmente no que tange à responsabilidade das instituições financeiras em contratos de empréstimo consignado e à necessidade de comprovação da efetiva disponibilização do crédito.
Da Admissibilidade Recursal
O recurso é tempestivo e preenche os demais requisitos de admissibilidade, razão pela qual dele conheço.
Das Preliminares e Prejudiciais de Mérito
As preliminares de irregularidade da procuração e de litigância predatória, bem como as prejudiciais de decadência e prescrição, foram corretamente afastadas pelo juízo a quo. A suposta conduta do patrono, se comprovada em outros autos, deve ser tratada em procedimento próprio, sem prejudicar o direito material da parte, que, como consumidora vulnerável, tem seu acesso à justiça garantido. O foco da presente demanda é a validade da contratação e a efetiva disponibilização do crédito, questões de mérito que não são afetadas por tais arguições.
Da Relação de Consumo e Inversão do Ônus da Prova
A relação jurídica estabelecida entre as partes é de consumo, nos termos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Consequentemente, aplicam-se as normas protetivas do CDC, em especial o artigo 6º, inciso VIII, que prevê a facilitação da defesa dos direitos do consumidor, inclusive com a inversão do ônus da prova, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando o consumidor for hipossuficiente.
No caso em tela, a hipossuficiência da Apelante é evidente, não apenas por ser consumidora em face de uma poderosa instituição financeira, mas também por sua condição de pessoa idosa e analfabeta funcional. Tal vulnerabilidade impõe à instituição bancária o dever de comprovar a regularidade da contratação e a efetiva disponibilização do crédito.
Da Nulidade do Contrato por Ausência de Prova da Disponibilização do Crédito
A Apelante nega veementemente ter contratado o empréstimo e, sobretudo, ter recebido o valor correspondente. Diante da inversão do ônus da prova, cabia ao Banco Apelado demonstrar, de forma cabal, que o valor de R$ 5.892,02, referente ao empréstimo consignado nº 0123457301731, foi efetivamente creditado na conta da Apelante.
Contrariamente ao que afirmou a sentença de primeiro grau, a análise dos extratos bancários juntados pelo próprio Banco (IDs 27229675 a 27229680) não revela qualquer crédito no valor de R$ 5.892,02 correspondente ao empréstimo em questão. Os extratos de 2022 (ID 27229678, pág. 3), período em que o empréstimo teria sido contratado (maio de 2022), mostram apenas outros créditos de valores distintos, referentes a outros contratos, mas nenhum que se vincule ao empréstimo ora discutido.
A mera apresentação de um "contrato eletrônico" sem a comprovação da efetiva transferência do numerário para a conta da Apelante é insuficiente para validar a contratação, especialmente quando a consumidora nega o recebimento.
Nesse sentido, a jurisprudência deste Tribunal de Justiça é pacífica, conforme a Súmula 18 do TJPI: “A ausência de comprovação pela instituição financeira da transferência do valor do contrato para a conta bancária do consumidor/mutuário, garantidos o contraditório e a ampla defesa, ensejará a declaração de nulidade da avença, com os consectários legais.”
Ainda que o Banco tivesse comprovado a disponibilização do crédito (o que não ocorreu), a condição de analfabeta funcional da Apelante impõe formalidades adicionais para a validade do contrato.
A Súmula 30 do TJPI é clara ao dispor:
“A ausência de assinatura a rogo e subscrição por duas testemunhas nos instrumento de contrato de mútuo bancário atribuídos a pessoa analfabeta torna o negócio jurídico nulo, mesmo que seja comprovada a disponibilização do valor em conta de sua titularidade, configurando ato ilícito, gerando o dever de repará-lo, cabendo ao magistrado ou magistrada, no caso concreto, e de forma fundamentada, reconhecer categorias reparatórias devidas e fixar o respectivo quantum, sem prejuízo de eventual compensação.”
A Súmula 37 do TJPI reforça essa exigência:
“Os contratos firmados com pessoas não alfabetizadas, inclusive os firmados na modalidade nato digital, devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo artigo 595, do Código Civil.”
O artigo 595 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) estabelece que "No contrato de prestação de serviço, quando qualquer das partes não souber ler, nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas". Embora o dispositivo se refira a contrato de prestação de serviço, por analogia e em observância ao princípio da boa-fé objetiva e da proteção do consumidor, aplica-se a contratos bancários firmados com pessoas analfabetas.
No presente caso, o Banco não apresentou contrato assinado pela Apelante, tampouco comprovou a observância das formalidades exigidas para a contratação com pessoa analfabeta. A ausência de prova da disponibilização do crédito, somada à inobservância das formalidades legais para a contratação com pessoa analfabeta, torna o contrato manifestamente nulo.
Da Repetição do Indébito
Declarada a nulidade do contrato, os valores descontados do benefício previdenciário da Apelante são indevidos e devem ser restituídos. Conforme o artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90): “O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”
A conduta do Banco, que realizou descontos sem comprovar a regularidade da contratação e a efetiva disponibilização do crédito, não configura "engano justificável". Pelo contrário, demonstra grave falha na prestação do serviço. Assim, a repetição deve ocorrer em dobro.
O valor a ser restituído em dobro corresponde ao total de R$ 4.252,85 (referente a 29 parcelas de R$ 146,65, conforme planilha da inicial), além de quaisquer outras parcelas que porventura tenham sido descontadas no curso do processo. Sobre esses valores, deverá incidir correção monetária pelo INPC desde cada desconto e juros de mora de 1% ao mês a partir da citação.
Dos Danos Morais
Os descontos indevidos de um benefício previdenciário, que, no caso da Apelante, constitui sua única fonte de sustento e é verba de caráter alimentar, extrapolam o mero aborrecimento e configuram dano moral in re ipsa. A privação de parte da renda essencial para a subsistência de uma pessoa idosa e vulnerável causa angústia, sofrimento e desequilíbrio financeiro, afetando diretamente sua dignidade.
A responsabilidade civil do Banco é objetiva, nos termos do artigo 14 do CDC, que dispõe sobre a responsabilidade do fornecedor de serviços pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços.
Para a fixação do quantum indenizatório, devem ser observados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, bem como o caráter punitivo-pedagógico da medida, sem, contudo, configurar enriquecimento ilícito da vítima. Considerando as peculiaridades do caso, a condição da vítima, a capacidade econômica do ofensor e os precedentes desta Corte em situações análogas, entendo que o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) é adequado e suficiente para compensar os danos sofridos e coibir a reiteração de condutas semelhantes.
Este valor deverá ser corrigido monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) a partir da data deste acórdão (Súmula 362 do Superior Tribunal de Justiça) e acrescido de juros de mora de 1% ao mês a partir da citação (Art. 405 do Código Civil).
Da Sucumbência
Com a reforma da sentença e o provimento do recurso da Apelante, impõe-se a condenação do Banco Apelado ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios. Estes últimos são fixados em 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação (soma da repetição do indébito e da indenização por danos morais), nos termos do artigo 85, § 2º, do Código de Processo Civil.
Dispositivo
Diante do exposto, e com fundamento no artigo 932, inciso V, do Código de Processo Civil, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO à Apelação Cível interposta por ANTONIA ROSA DE LIMA, para REFORMAR INTEGRALMENTE a sentença de primeiro grau e, em consequência:
1. DECLARAR a nulidade do contrato de empréstimo consignado nº 0123457301731, bem como de todos os descontos dele decorrentes.
2. CONDENAR o Banco Bradesco S.A. a restituir em dobro os valores indevidamente descontados do benefício previdenciário da Apelante, totalizando R$ 4.252,85 (quatro mil, duzentos e cinquenta e dois reais e oitenta e cinco centavos), além de quaisquer outras parcelas que porventura tenham sido descontadas no curso do processo. O valor deverá ser corrigido monetariamente pelo INPC desde cada desconto e acrescido de juros de mora de 1% ao mês a partir da citação.
3. CONDENAR o Banco Bradesco S.A. ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a ser corrigido monetariamente pelo INPC a partir da data desta decisão monocrática (Súmula 362 do STJ) e acrescido de juros de mora de 1% ao mês a partir da citação.
4. CONDENAR o Banco Bradesco S.A. ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, que fixo em 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação (soma da repetição do indébito e da indenização por danos morais), nos termos do art. 85, § 2º, do Código de Processo Civil.
Intime-se. Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos, observadas as formalidades legais.
TERESINA-PI, 1 de setembro de 2025.
0802059-03.2024.8.18.0068
Órgão JulgadorDesembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Órgão Julgador Colegiado1ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorANTONIA ROSA DE LIMA
RéuBANCO BRADESCO S.A.
Publicação01/09/2025