poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
PROCESSO Nº: 0825098-41.2023.8.18.0140
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Empréstimo consignado]
APELANTE: MARILENE LEITE BORGES DA SOUSA
APELADO: BANCO BRADESCO S.A.
DECISÃO MONOCRÁTICA
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR DESATENDIMENTO À EMENDA DA INICIAL. EXIGÊNCIA DE EXTRATOS BANCÁRIOS, PROCURAÇÃO PÚBLICA E COMPROVANTE DE ENDEREÇO. DOCUMENTOS NÃO INDISPENSÁVEIS À PROPOSITURA DA AÇÃO. EXCESSO DE FORMALISMO. CONFORMIDADE COM PRECEDENTES DO TJPI E STJ. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA (ART. 10 CPC). PROLAÇÃO DA SENTENÇA ENQUANTO AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA A ORDEM DE EMENDA ESTAVA PENDENTE. ERROR IN PROCEDENDO. ANULAÇÃO DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
Apelação Cível interposta contra sentença que extinguiu ação declaratória de nulidade de contrato bancário c/c repetição de indébito e indenização por danos morais, sob fundamento de descumprimento da ordem de emenda da petição inicial. A autora alegou não ter contratado empréstimo consignado e pleiteou reparação pelos descontos indevidos em seu benefício previdenciário.
Há três questões em discussão: (i) definir se a ausência de juntada de extratos bancários, comprovante de residência atualizado e procuração pública de analfabeto autoriza a extinção do processo; (ii) estabelecer se a suspeita de advocacia predatória justifica a exigência de documentos adicionais como condição de procedibilidade; (iii) determinar se a extinção do feito durante a tramitação de Agravo de Instrumento que impugnava a ordem de emenda caracteriza error in procedendo.
A jurisprudência do TJPI e do STJ reconhece que extratos bancários não são documentos indispensáveis à propositura de ação declaratória de nulidade de contrato bancário, podendo ser apresentados na instrução ou por inversão do ônus da prova.
A exigência de comprovante de residência atualizado pode ser mitigada, devendo prevalecer os princípios do acesso à justiça e da primazia da decisão de mérito.
A Súmula 32 do TJPI afasta a obrigatoriedade de procuração pública para parte analfabeta, bastando instrumento particular a rogo com assinatura de duas testemunhas, conforme art. 595 do CC.
A mera repetição de demandas não configura, por si só, advocacia predatória, sendo legítima a padronização de peças em litígios de massa.
A extinção do processo, enquanto pendente julgamento de Agravo de Instrumento que questionava a ordem de emenda, viola o princípio da não surpresa (CPC, art. 10) e caracteriza error in procedendo.
O CPC, art. 932, IV, autoriza a decisão monocrática para anular sentença que contrarie súmula ou jurisprudência consolidada.
Recurso provido.
Tese de julgamento:
Extratos bancários não constituem documento indispensável para o ajuizamento de ação de nulidade de contrato bancário.
A procuração de analfabeto é válida se firmada a rogo e subscrita por duas testemunhas, sendo desnecessária a forma pública.
A suspeita de advocacia predatória não autoriza a extinção prematura do processo sem oportunizar contraditório efetivo.
A extinção do feito durante a tramitação de recurso que impugna a ordem de emenda configura error in procedendo por violação ao princípio da não surpresa.
Dispositivos relevantes citados: CPC, arts. 4º, 10, 485, I, IV e VI, e 932, IV; CC, art. 595.
Jurisprudência relevante citada: TJPI, Súmula 14; TJPI, Súmula 32; TJPI, Súmula 33; TJPI, Apelação Cível nº 0800014-07.2021.8.18.0076, Rel. Raimundo Eufrásio Alves Filho, j. 16.06.2023; TJPI, Apelação Cível nº 0800499-36.2023.8.18.0076, Rel. Ricardo Gentil Eulálio Dantas, j. 01.03.2024.
VISTOS, etc.
Trata-se de Apelação Cível interposta por MARILENE LEITE BORGES DA SOUSA contra a r. sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara da Comarca de Bom Jesus/PI, que, nos autos da AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, julgou extinto o feito sem resolução do mérito, com fulcro no art. 485, I, IV e VI, do Código de Processo Civil (CPC).
O apelo merece ser conhecido, porquanto preenchidos os requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade recursal.
1. Do Contexto Processual
A autora ajuizou a ação com o objetivo de declarar a nulidade de um contrato de empréstimo consignado e buscar reparação por danos materiais e morais, alegando que o empréstimo não foi contratado por ela e que os descontos em seu benefício previdenciário eram indevidos.
O Juízo de primeiro grau determinou a emenda da petição inicial em 15 dias, sob pena de indeferimento, solicitando esclarecimentos sobre a conduta do advogado, razões para a ausência de busca por solução extrajudicial, juntada de extrato bancário do mês da suposta contratação, procuração de poderes assinada pela parte autora (comprovante de residência em seu nome na comarca, e declaração de hipossuficiência). O magistrado fundamentou sua decisão na necessidade de zelar pela boa-fé processual e prevenir o abuso da litigância de massa, mencionando indícios de "advocacia predatória" (ID 19765387).
A parte autora informou a interposição de Agravo de Instrumento contra essa decisão, buscando suspender a ordem de emenda (ID 19765388, ID 19765389). Não obstante, o Juízo de origem proferiu sentença de extinção do feito sem resolução do mérito, sob o argumento de que a ordem de emenda não foi satisfatoriamente cumprida, destacando que a interposição do Agravo de Instrumento não suspenderia o processo e faria o recurso perder objeto (ID 19765393).
Irresignada, a autora interpôs a presente Apelação Cível (ID 19765400), arguindo que a decisão atacada incorreu em error in procedendo e error in judicando.
2. Da Preliminar de Ofensa ao Princípio da Dialeticidade
Em contrarrazões, o apelado suscitou preliminar de não conhecimento do apelo por suposta ofensa ao princípio da dialeticidade. Contudo, em detida análise das razões recursais, verifica-se que a apelante rebateu pormenorizadamente os fundamentos da sentença, demonstrando sua insatisfação e a pretensão de reforma.
A Súmula 14 deste Egrégio Tribunal de Justiça é clara ao dispor que "A ofensa ao princípio da dialeticidade é defeito substancial, afetando, portanto, a própria essência do instrumento processual, ensejando o não conhecimento do recurso e dispensando a prévia intimação da parte recorrente ante a impossibilidade de complemento ou a alteração da respectiva fundamentação, autorizando o relator a decidi-lo monocraticamente nos termos do artigo 1.011, I do Código de Processo Civil." No caso em tela, não se observa o vício apontado, pois a apelante demonstrou clara correspondência entre o que foi decidido e sua pretensão de reforma.
Assim, rejeito a preliminar arguida pelo apelado.
3. Da Fundamentação - Error in Procedendo
O cerne da insurgência recursal reside na extinção prematura do processo por desatendimento a uma ordem de emenda da inicial. A decisão recorrida baseou-se em três pilares: a exigência de extratos bancários, a formalidade da procuração e do comprovante de residência, e a suspeita de advocacia predatória. Contudo, a jurisprudência deste Tribunal e dos Tribunais Superiores afasta a indispensabilidade de tais documentos para a propositura da ação e mitiga a rigidez formal.
3.1. Da Desnecessidade de Emenda da Inicial com Extratos Bancários e Comprovante de Residência
A jurisprudência deste Tribunal consolidou-se no sentido de que extratos bancários não configuram documentos indispensáveis à propositura de ação declaratória de nulidade de contrato bancário, podendo ser produzidos em fase de instrução ou por meio da inversão do ônus da prova. A Apelação Cível nº 0800014-07.2021.8.18.0076, Rel. Raimundo Eufrásio Alves Filho, julgada em 16/06/2023, expressamente consigna que:
"O fato dos comprovantes não serem juntados não é caso de indeferimento da inicial, mas sim um ônus exigido da parte durante o processo ou que pode até mesmo ser invertido em favor da parte hipossuficiente, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor, uma vez que o contrato poderá ser juntado aos autos pela Instituição financeira ora apelada. Já o pedido de resolução do conflito na via administrativa, também não é requisito para a propositura da petição inicial, levando-se em consideração o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição."
No mesmo sentido, a exigência de comprovante de residência atualizado para a propositura da ação também tem sido mitigada. AApelação Cível nº 0800499-36.2023.8.18.0076, Rel. Ricardo Gentil Eulálio Dantas, julgada em 01/03/2024, embora reconheça a legitimidade da exigência em caso de suspeita, reitera o princípio da primazia da decisão de mérito:
CIVIL. CONSUMIDOR. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL. DETERMINAÇÃO DE JUNTADA DE COMPROVANTE DE ENDEREÇO ATUALIZADO. PODER GERAL DE CAUTELA DO JUÍZO. ADVOCACIA PREDATÓRIA. MANUTENÇÃO SENTENÇA. 1. Aplica se ao presente caso o Código de Defesa do Consumidor (CDC), consoante disposto no diploma e no enunciado de súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). 2. A declaração de residência e o comprovante de endereço juntados pela parte autora datam de quase dois anos antes do ajuizamento da ação. 3. Considerando ação da competência territorial, bem como tomando por base o poder de cautela do magistrado, entende-se por adequada e razoável a determinação do magistrado de origem no sentido de que fosse apresentado comprovante de residência atualizado. 4. Salienta-se que, na decisão de emenda, o juízo de primeiro grau consignou que o comprovante de endereço poderia ser em nome diverso do da Autora, em evidente atenção aos princípio do acesso à justiça e da primazia da decisão de mérito 5. Recurso conhecido e improvido. (Apelação Cível – 0800499-36.2023.8.18.0076 - 3 ª Câmara Especializada Cível - Relator: Ricardo Gentil Eulálio Dantas – 01/03/2024).
3.2. Da Validade da Procuração por Analfabeto
A Súmula 32 do TJPI, aprovada em 15/07/2024, dispõe:
"É desnecessária a apresentação de procuração pública pelo advogado de parte analfabeta para defesa de seus interesses em juízo, podendo ser juntada procuração particular com assinatura a rogo e duas testemunhas, na forma estabelecida no artigo 595 do Código Civil."
Este precedente vinculante afasta de pronto a exigência de procuração pública ou qualquer formalidade excessiva não prevista no Código Civil para pessoas analfabetas, desde que a procuração esteja a rogo e subscrita por duas testemunhas. A exigência de maior formalismo do que o exigido por lei configura cerceamento de defesa e desrespeito ao direito de acesso à justiça.
3.3. Da "Advocacia Predatória" e a Violação ao Princípio da Não Surpresa
A Súmula 33 do TJPI legitima a exigência de documentos em caso de "fundada suspeita de demanda repetitiva ou predatória". No entanto, o simples ajuizamento de diversas ações com teses semelhantes não configura, por si só, litigância de má-fé ou advocacia predatória. A padronização de peças é natural em processos de massa que envolvem a mesma causa de pedir e pedidos semelhantes.
Mais grave, no caso concreto, foi a violação ao princípio da não surpresa, consagrado no Art. 10 do CPC:
"O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício."
A parte apelante interpôs Agravo de Instrumento contra a decisão que determinou a emenda da inicial, com o objetivo de que o Tribunal Superior se manifestasse sobre a legalidade das exigências. A prolação da sentença extintiva pelo juízo de origem, enquanto o Agravo de Instrumento ainda estava pendente de julgamento no Tribunal (conforme se depreende do processo principal, em que foram juntados documentos aos ID´s 19765402, 19765403 e 19765404), constitui um error in procedendo. O magistrado não deveria ter extinguido o feito antes da resolução do recurso que questionava a própria validade da ordem de emenda, impedindo a parte de ter uma análise superior sobre a questão que fundamentou a extinção.
Tal conduta contraria a razoabilidade e a sistemática processual, que preza pela primazia do julgamento do mérito (Art. 4º do CPC). A extinção do processo sem resolução do mérito deve ser medida excepcional, não podendo ser utilizada como penalidade por um alegado descumprimento que estava sob análise recursal.
3.4. Da Legitimidade da Decisão Monocrática
A presente decisão monocrática encontra amparo no Art. 932, inciso IV, alínea "a" e "b", do CPC, uma vez que a sentença recorrida contraria súmula e precedentes deste Tribunal de Justiça, bem como súmula e precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
A jurisprudência pacífica deste TJPI, consolidada em Súmulas e acórdãos (conforme citado em pontos 3.1 e 3.2), afasta a exigência de extratos bancários como documento indispensável à propositura da ação, valida a procuração a rogo para analfabetos e mitiga a obrigatoriedade de comprovante de residência atualizado, além de estabelecer os limites para a alegação de advocacia predatória. A violação do princípio da não surpresa, por sua vez, constitui uma nulidade processual que deve ser reconhecida.
4. Dispositivo
Diante do exposto, com fundamento no art. 932, inciso IV, alíneas "a" e "b", do Código de Processo Civil, c/c a Súmula 32 do TJPI e a jurisprudência dominante sobre o tema, CONHEÇO do recurso de Apelação Cível e a ele DOU PROVIMENTO para ANULAR a sentença de ID 19765393, determinando o retorno dos autos ao Juízo de origem para o regular processamento do feito, a fim de que seja dada a devida instrução processual e, posteriormente, proferida nova sentença de mérito.
Custas recursais pelo apelado, Banco Bradesco S.A. Majoro os honorários advocatícios em 2% (dois por cento) sobre o valor da causa, nos termos do art. 85, § 11, do CPC, a serem suportados pelo apelado, observada a gratuidade de justiça concedida à parte apelante na origem.
Intime-se. Cumpra-se.
TERESINA-PI, 1 de setembro de 2025.
0825098-41.2023.8.18.0140
Órgão JulgadorDesembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Órgão Julgador Colegiado1ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorMARILENE LEITE BORGES DA SOUSA
RéuBANCO BRADESCO S.A.
Publicação01/09/2025