poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
PROCESSO Nº: 0804085-81.2023.8.18.0076
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Inclusão Indevida em Cadastro de Inadimplentes, Indenização por Dano Material, Empréstimo consignado]
APELANTE: FRANCISCO DAS CHAGAS SILVA
APELADO: BANCO ITAU CONSIGNADO S/A
DECISÃO TERMINATIVA
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE/INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO CONTRATUAL C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E DANOS MORAIS. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL E EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. NÃO APRESENTAÇÃO DE PROCURAÇÃO ESPECÍFICA, COMPROVANTE DE RESIDÊNCIA, INSTRUMENTO CONTRATUAL, EXTRATOS BANCÁRIOS E NÃO QUANTIFICAÇÃO DE VALORES. DEVER DE COLABORAÇÃO DA PARTE AUTORA. PODER GERAL DE CAUTELA DO MAGISTRADO. INDÍCIOS DE LITIGÂNCIA PREDATÓRIA. CONFORMIDADE COM O TEMA 1198/STJ, SÚMULAS 26 E 33 DO TJPI, NOTAS TÉCNICAS DO CIJEPI E RECOMENDAÇÃO CNJ Nº 159/2024. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
I – RELATÓRIO
Trata-se de Apelação Cível interposta por FRANCISCO DAS CHAGAS SILVA contra a sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de União (Num. 21666219, 11/07/2024). A decisão de primeira instância indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito formulado na Ação Declaratória de Nulidade/Inexistência de Relação Contratual c/c Repetição de Indébito e Indenização por Danos Morais ajuizada em face do BANCO ITAU CONSIGNADO S/A.
A ação originária, ajuizada em 27/08/2023, buscava a declaração de nulidade/inexistência do contrato de empréstimo consignado nº 554664025. Cumulativamente, foram formulados pedidos de repetição do indébito e indenização por danos morais. O autor, qualificado como idoso e analfabeto funcional, alegou não ter contratado o empréstimo e sofrer descontos indevidos em seu benefício previdenciário.
O Juízo de primeiro grau, ao analisar a petição inicial, inicialmente determinou a emenda para que a parte autora juntasse procuração com poderes específicos (escritura pública para analfabetos), comprovante de residência legível e atualizado, o instrumento contratual, identificasse o contrato no extrato do INSS, quantificasse o valor pleiteado a título de repetição de indébito e danos morais, e se manifestasse acerca das parcelas já prescritas (Num. 21666158, 08/01/2024), fundamentando no dever de colaboração com a Justiça (Art. 6º, CPC) e na Nota Técnica nº 06 do TJPI.
Contudo, a parte autora deixou de cumprir satisfatoriamente essa determinação, manifestando-se contra as exigências, alegando excesso de formalismo e violação aos princípios da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça, citando precedentes do CNJ e do STJ sobre a validade da procuração e a desnecessidade de esgotamento da via administrativa (Num. 21666160, 29/02/2024).
A sentença (Num. 21666219, 11/07/2024) indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito, com fundamento no Art. 321, parágrafo único, c/c Art. 485, inciso I, ambos do CPC, entendendo que a autora não cumpriu a determinação, o que foi interpretado como indício de "demanda predatória".
Em suas razões recursais (Num. 21666221, 12/08/2024), o apelante reitera a tese de que a sentença foi equivocada, pugnando pela reforma da decisão de extinção, argumentando sobre a desnecessidade da juntada de procuração atualizada, comprovante de residência, instrumento contratual e extratos bancários, além da aplicação da inversão do ônus da prova e a inaplicabilidade da exigência de conciliação prévia. Invoca as Súmulas 18, 26 e 30 do TJPI.
O apelado, BANCO ITAU CONSIGNADO S/A, não apresentou contrarrazões, conforme documentos dos autos.
O recurso foi recebido no duplo efeito (Num. 21690734, 28/01/2025).
É o relatório. DECIDO.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A presente Apelação Cível comporta julgamento monocrático, nos termos do Art. 932, inciso V, do Código de Processo Civil, uma vez que a matéria em debate encontra-se em conformidade com súmulas e entendimentos dominantes do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal.
2.1. Do Poder Geral de Cautela do Magistrado e da Prevenção à Litigância Abusiva/Predatória
A questão central desta apelação reside na correção da sentença de primeiro grau que indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito, em um contexto de combate à litigância predatória. O poder geral de cautela do magistrado, previsto no art. 139, inciso III, do Código de Processo Civil, autoriza-o a "prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias".
Este poder-dever tem sido amplamente discutido e reforçado pelos órgãos de controle do Poder Judiciário, especialmente diante do crescente volume de ações judiciais em massa, muitas vezes com características de litigância abusiva.
A Nota Técnica nº 06/2023 do CIJEPI destaca o aumento desproporcional de ações envolvendo empréstimos consignados no Piauí e a "grande similaridade entre as petições iniciais analisadas (mais de 92%)", o que levanta fortes indícios de "demandas fabricadas" ou "predatórias".
A Nota Técnica nº 08/2023 do CIJEPI conceitua demanda predatória como aquela "oriunda da prática de ajuizamento de ações produzidas em massa, utilizando-se de petições padronizadas contendo teses genéricas, desprovidas, portanto, das especificidades do caso concreto, havendo alteração apenas quanto às informações pessoais da parte, de forma a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa."
Nesse cenário, a Recomendação CNJ nº 159/2024 reforça a necessidade de os juízes e tribunais adotarem medidas para identificar, tratar e prevenir a litigância abusiva. O Anexo A, item 7, da referida Recomendação, aponta como conduta potencialmente abusiva a "distribuição de ações judiciais semelhantes, com petições iniciais que apresentam informações genéricas e causas de pedir idênticas, frequentemente diferenciadas apenas pelos dados pessoais das partes envolvidas, sem a devida particularização dos fatos do caso concreto".
A legitimidade das exigências formuladas pelo juízo de primeiro grau encontra respaldo no Tema 1198 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trata da "possibilidade de o magistrado, no exercício do seu poder geral de cautela (art. 139, III, do CPC), determinar a apresentação de documentos, a realização de audiência de conciliação ou de ratificação do mandato, ou outras medidas que visem a coibir a litigância predatória, especialmente em ações de massa". (STJ, Tema 1198, REsp 1.765.170/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 24/08/2022, DJe 16/09/2022). As exigências de apresentação de documentos não se configuram como obstáculos ao acesso à justiça, mas sim como ferramentas legítimas para que o juízo possa aferir a regularidade da representação e a verossimilhança das alegações.
A Recomendação CNJ nº 159/2024, em seu Anexo B, item 9, expressamente recomenda a "notificação para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação, sempre que houver dúvida fundada sobre a autenticidade, validade ou contemporaneidade daqueles apresentados no processo". (CNJ, Recomendação nº 159/2024, Anexo B, item 9, 23/10/2024).
Não há que se falar em violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (Art. 5º, XXXV, CF). O direito de ação não é absoluto e deve ser exercido em conformidade com a boa-fé e a probidade processual. A conduta do apelante, que se manteve inerte diante de uma determinação judicial crucial para o saneamento do processo, incluindo a apresentação de procuração específica, comprovante de residência, instrumento contratual e extratos bancários, bem como a quantificação dos valores, justifica o indeferimento da petição inicial e a consequente extinção do processo sem resolução do mérito, conforme corretamente aplicado pelo juízo de primeiro grau.
2.2. Da Legitimidade das Exigências e da Súmula 33 do TJPI
A exigência de apresentação de extrato bancário do período da suposta contratação, a procuração específica e a quantificação do dano moral são plenamente legítimas e se inserem no poder geral de cautela do magistrado. Visam verificar a verossimilhança das alegações e a correta qualificação da parte.
A Nota Técnica nº 06/2023 do CIJEPI expressamente sugere como medidas de combate à demanda predatória a "determinação de juntada de novos documentos atualizados", incluindo a "apresentação de comprovante de endereço atualizado".
Nesse sentido, a Súmula 33 do TJPI é clara ao dispor que: "Em caso de fundada suspeita de demanda repetitiva ou predatória, é legítima a exigência dos documentos recomendados pelas Notas Técnicas do Centro de Inteligência da Justiça Estadual Piauiense, com base no artigo 321 do Código de Processo Civil." (TJPI, Súmula 33, Redação alterada na 141ª Sessão Ordinária Administrativa pelo Tribunal Pleno em 15/07/2024).
A Súmula 26 do TJPI também reforça que, embora se aplique a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, isso "não dispensa que o consumidor prove a existência de indícios mínimos do fato constitutivo de seu direito, de forma voluntária ou por determinação do juízo". (TJPI, Súmula 26, Redação alterada na 141ª Sessão Ordinária Administrativa pelo Tribunal Pleno em 15/07/2024). A apresentação dos documentos solicitados é um meio razoável para fornecer esses indícios mínimos e permitir o saneamento do processo.
A insuficiência de cumprimento do apelante em apresentar os documentos que satisfizessem a determinação judicial, documentos cuja exigência é plenamente legal e justificada pelo contexto de combate à litigância predatória, contribuiu para a ausência de comprovação dos fatos constitutivos de seu direito, fundamentando o indeferimento da petição inicial e a consequente extinção do processo sem resolução do mérito.
2.3. Da Prejudicialidade dos Demais Argumentos do Apelante
O apelante, em suas razões recursais, invoca as Súmulas 18, 26 e 30 do TJPI, argumentando sobre a nulidade do contrato por ausência de transferência do valor, a inversão do ônus da prova e as formalidades para contratos com pessoas analfabetas.
Contudo, a conduta processual do apelante, caracterizada pela não colaboração com a emenda da inicial, inviabilizou a própria análise do mérito da demanda. A não apresentação dos extratos bancários, da procuração específica e a não quantificação do dano moral, apesar de expressa determinação judicial, impediram o saneamento do processo e a verificação dos pressupostos mínimos para o prosseguimento da ação.
Nesse sentido é o entendimento deste Tribunal de Justiça do Piauí:
"RECURSO DE APELAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE JUNTADA DE DOCUMENTOS COMPLEMENTARES. DEMANDAS PREDATÓRIAS. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. I. Apelação interposta em face de sentença que extinguiu o processo sem resolução do mérito, em razão do descumprimento da determinação judicial para a juntada de documentos essenciais, incluindo procuração pública atualizada, comprovante de residência e declaração de pobreza. (…) O magistrado possui o dever de prevenir abusos processuais e reprimir demandas predatórias, conforme estabelece o art. 139, III, do CPC, incluindo a adoção de medidas voltadas ao controle do desenvolvimento regular do processo. O ajuizamento de demandas predatórias, caracterizadas por teses genéricas em massa, prejudica o contraditório, a ampla defesa e a celeridade processual, comprometendo o funcionamento do Judiciário. A determinação de apresentação de procuração pública para pessoas analfabetas e documentos comprobatórios visou garantir a legitimidade das demandas e prevenir fraudes, não se configurando medida desproporcional diante da suspeita de litigância predatória. A ausência de emenda à inicial dentro do prazo legal enseja, conforme o art. 321, parágrafo único, do CPC, o indeferimento da petição inicial e a consequente extinção do processo sem resolução do mérito. A decisão proferida respeita os princípios processuais da vedação à decisão surpresa, do dever de cooperação e da celeridade processual. IV. Recurso desprovido." (TJPI, Apelação Cível: 0801799-78.2023.8.18.0061, Relator: José James Gomes Pereira, Data de Julgamento: 20/03/2025, 2ª Câmara Especializada Cível, Data de Publicação: 20/03/2025).
III – DISPOSITIVO
Ante o exposto e em consonância com o entendimento dominante do Superior Tribunal de Justiça (Tema 1198), das Notas Técnicas do Tribunal de Justiça do Piauí (NT06/2023 e NT08/2023) e da Recomendação CNJ nº 159/2024, CONHEÇO do recurso de apelação e a ele NEGO PROVIMENTO, mantendo incólume a sentença de primeiro grau que indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito.
Custas e honorários recursais pelo Apelante, fixados em 15% (quinze por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do Art. 85, § 11, do Código de Processo Civil, cuja exigibilidade ficará suspensa em razão da concessão da justiça gratuita (Art. 98, § 3º, do Código de Processo Civil).
Publique-se. Intimem-se.
CUMPRA-SE.
TERESINA-PI, 02 de setembro de 2025.
DESEMBARGADOR ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Relator
0804085-81.2023.8.18.0076
Órgão JulgadorDesembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Órgão Julgador Colegiado1ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorFRANCISCO DAS CHAGAS SILVA
RéuBANCO ITAU CONSIGNADO S/A
Publicação02/09/2025