poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
PROCESSO Nº: 0801288-59.2022.8.18.0047
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Inclusão Indevida em Cadastro de Inadimplentes, Indenização por Dano Material, Empréstimo consignado]
APELANTE: ROSA ALVES DA SILVA
APELADO: BANCO VOTORANTIM S.A.
REPRESENTANTE: BANCO VOTORANTIM S.A.
DECISÃO TERMINATIVA
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO CONTRATUAL C/C REPETIÇÃO DO INDÉBITO E DANOS MORAIS. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. NÃO CUMPRIMENTO DE DETERMINAÇÃO JUDICIAL. EXIGÊNCIA DE PROCURAÇÃO COM FIRMA RECONHECIDA OU PÚBLICA PARA ANALFABETO E COMPROVANTE DE RESIDÊNCIA ATUALIZADO. PODER GERAL DE CAUTELA DO MAGISTRADO. INDÍCIOS DE LITIGÂNCIA PREDATÓRIA. CONFORMIDADE COM O TEMA 1198/STJ, SÚMULAS 26 E 33 DO TJPI, NOTAS TÉCNICAS DO CIJEPI E RECOMENDAÇÃO CNJ Nº 159/2024. SÚMULA 32 DO TJPI CONTEXTUALIZADA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
I – RELATÓRIO
Trata-se de Apelação Cível interposta por ROSA ALVES DA SILVA contra a sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Cristino Castro/PI (Num. 21730824, 16/06/2024). A decisão de primeira instância extinguiu o processo sem resolução do mérito formulado na Ação Declaratória de Inexistência de Relação Contratual c/c Pedido de Repetição do Indébito e Indenização por Danos Morais ajuizada em face do BANCO VOTORANTIM S.A. (Num. 8505127, 18/07/2022).
A ação originária buscava a declaração de inexistência do contrato de empréstimo consignado nº 233254400. Cumulativamente, foram formulados pedidos de repetição do indébito e indenização por danos morais. A autora, qualificada como idosa e analfabeta, alegou não ter contratado o empréstimo e sofrer descontos indevidos em seu benefício previdenciário.
O Juízo de primeiro grau, ao analisar a petição inicial, proferiu sentença (Num. 8505129, 01/08/2022) que extinguiu o processo por prescrição. Contudo, esta 1ª Câmara Especializada Cível, por meio de acórdão (Num. 11835102, 21/06/2023), deu provimento à apelação da autora, anulando a sentença e determinando o retorno dos autos à origem para regular processamento, por entender que o prazo prescricional em casos de empréstimo consignado se renova a cada desconto mensal e que o processo não estava maduro para julgamento.
Após o retorno dos autos e a apresentação de contestação e réplica, o Juízo de primeiro grau proferiu novo despacho (Num. 21730820, 21/02/2024), determinando que a Apelante juntasse, no prazo de 15 dias, instrumento de mandato atual com firma reconhecida ou procuração pública, na hipótese de se tratar de pessoa analfabeta, e comprovante de residência atual (últimos 03 meses) e em seu nome, para aferir a competência territorial e afastar a fundada suspeita de demanda predatória, sob pena de extinção.
A parte autora manifestou-se (Num. 21730821 e 21730822, 22/03/2024) pela desnecessidade da juntada dos documentos, invocando o Art. 595 do Código Civil e a jurisprudência sobre a desnecessidade de procuração pública para analfabetos e a não essencialidade do comprovante de residência.
A sentença (Num. 21730824, 16/06/2024) indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito, com fundamento no Art. 485, IV, do CPC, entendendo que a autora não cumpriu a determinação de emenda à inicial, o que foi interpretado como indício de "demanda predatória".
Em suas razões recursais (Num. 21730826, 15/07/2024), a apelante reitera a tese de que a sentença foi equivocada, pugnando pela reforma da decisão de extinção, argumentando sobre a desnecessidade das exigências e o excesso de formalismo.
O apelado, BANCO VOTORANTIM S.A., apresentou contrarrazões (Num. 21730829, 27/08/2024), defendendo a manutenção da sentença, reiterando a validade da extinção e a correção da condenação por litigância de má-fé.
O recurso foi recebido no duplo efeito (Num. 24023655, 01/04/2025).
É o relatório. DECIDO.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A presente Apelação Cível comporta julgamento monocrático, nos termos do Art. 932, inciso V, do Código de Processo Civil, uma vez que a matéria em debate encontra-se em conformidade com súmulas e entendimentos dominantes do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal, especialmente no que tange ao combate à litigância abusiva.
2.1. Do Poder Geral de Cautela do Magistrado e da Prevenção à Litigância Abusiva/Predatória
A questão central desta apelação reside na correção da sentença de primeiro grau que extinguiu o processo sem resolução do mérito, em um contexto de combate à litigância predatória. O poder geral de cautela do magistrado, previsto no art. 139, inciso III, do CPC, autoriza-o a "prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias".
Este poder-dever tem sido amplamente discutido e reforçado pelos órgãos de controle do Poder Judiciário, especialmente diante do crescente volume de ações judiciais em massa, muitas vezes com características de litigância abusiva.
A Nota Técnica nº 06/2023 do CIJEPI destaca o aumento desproporcional de ações envolvendo empréstimos consignados no Piauí e a "grande similaridade entre as petições iniciais analisadas (mais de 92%)", o que levanta fortes indícios de "demandas fabricadas" ou "predatórias". A Nota Técnica nº 08/2023 do CIJEPI conceitua demanda predatória como aquela "oriunda da prática de ajuizamento de ações produzidas em massa, utilizando-se de petições padronizadas contendo teses genéricas, desprovidas, portanto, das especificidades do caso concreto, havendo alteração apenas quanto às informações pessoais da parte, de forma a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa."
Nesse cenário, a Recomendação CNJ nº 159/2024 reforça a necessidade de os juízes e tribunais adotarem medidas para identificar, tratar e prevenir a litigância abusiva. O Anexo A, item 7, da referida Recomendação, aponta como conduta potencialmente abusiva a "distribuição de ações judiciais semelhantes, com petições iniciais que apresentam informações genéricas e causas de pedir idênticas, frequentemente diferenciadas apenas pelos dados pessoais das partes envolvidas, sem a devida particularização dos fatos do caso concreto".
A legitimidade das exigências formuladas pelo juízo de primeiro grau encontra respaldo no Tema 1198 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trata da "possibilidade de o magistrado, no exercício do seu poder geral de cautela (art. 139, III, do CPC), determinar a apresentação de documentos, a realização de audiência de conciliação ou de ratificação do mandato, ou outras medidas que visem a coibir a litigância predatória, especialmente em ações de massa". (STJ, Tema 1198, REsp 1.765.170/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 24/08/2022, DJe 16/09/2022). As exigências de apresentação de documentos não se configuram como obstáculos absolutos ao acesso à justiça, mas sim como ferramentas legítimas para que o juízo possa aferir a regularidade da representação e a verossimilhança das alegações.
A Recomendação CNJ nº 159/2024, em seu Anexo B, item 9, expressamente recomenda a "notificação para apresentação de documentos originais, regularmente assinados ou para renovação de documentos indispensáveis à propositura da ação, sempre que houver dúvida fundada sobre a autenticidade, validade ou contemporaneidade daqueles apresentados no processo". (CNJ, Recomendação nº 159/2024, Anexo B, item 9, 23/10/2024).
Não há que se falar em violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (Art. 5º, XXXV, CF). O direito de ação não é absoluto e deve ser exercido em conformidade com a boa-fé e a probidade processual. A conduta da apelante, que se manteve inerte diante de uma determinação judicial crucial para o saneamento do processo, justifica a extinção do processo sem resolução do mérito, conforme corretamente aplicado pelo juízo de primeiro grau.
2.2. Da Legitimidade das Exigências e da Súmula 33 do TJPI
A exigência de apresentação de procuração com firma reconhecida ou por instrumento público (para analfabetos) e de comprovante de residência atualizado são plenamente legítimas e se inserem no poder geral de cautela do magistrado. Visam verificar a verossimilhança das alegações e a correta qualificação da parte, especialmente em um contexto de suspeita de litigância predatória.
A Nota Técnica nº 06/2023 do CIJEPI expressamente sugere como medidas de combate à demanda predatória a "determinação à parte autora para exibir procuração por escritura pública, quando se tratar de analfabeto" e a "exigir apresentação de procuração e de comprovante de endereço atualizado".
Nesse sentido, a Súmula 33 do TJPI é clara ao dispor que:
Súmula 33/TJPI: "Em caso de fundada suspeita de demanda repetitiva ou predatória, é legítima a exigência dos documentos recomendados pelas Notas Técnicas do Centro de Inteligência da Justiça Estadual Piauiense, com base no artigo 321 do Código de Processo Civil." (TJPI, Súmula 33, Redação alterada na 141ª Sessão Ordinária Administrativa pelo Tribunal Pleno em 15/07/2024).
A Súmula 26 do TJPI também reforça que, embora se aplique a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, isso "não dispensa que o consumidor prove a existência de indícios mínimos do fato constitutivo de seu direito, de forma voluntária ou por determinação do juízo". (TJPI, Súmula 26, Redação alterada na 141ª Sessão Ordinária Administrativa pelo Tribunal Pleno em 15/07/2024). A apresentação dos documentos solicitados é um meio razoável para fornecer esses indícios mínimos e permitir o saneamento do processo.
Embora a Súmula 32 do TJPI estabeleça que "É desnecessária a apresentação de procuração pública pelo advogado de parte analfabeta para defesa de seus interesses em juízo, podendo ser juntada procuração particular com assinatura a rogo e duas testemunhas", é fundamental contextualizar este entendimento. Em situações de fundada suspeita de litigância predatória, a exigência de medidas adicionais de verificação, como a procuração pública ou a ratificação do mandato em audiência (conforme Súmula 34 do TJPI), não se contrapõe à Súmula 32, mas a complementa. A Súmula 32 trata da regra geral; as Súmulas 33 e 34, em conjunto com as Notas Técnicas do CIJEPI e as Recomendações do CNJ, tratam da exceção justificada pela necessidade de coibir abusos. A inércia da parte em cumprir qualquer das formas de saneamento da dúvida levantada pelo juízo demonstra falta de colaboração e justifica a extinção.
2.3. Da Prejudicialidade dos Demais Argumentos da Apelante
A apelante, em suas razões recursais, invoca a Súmula 32 do TJPI e argumentos sobre a desnecessidade de comprovante de residência. Contudo, a conduta processual da apelante, caracterizada pela não colaboração com a emenda da inicial, inviabilizou a própria análise do mérito da demanda. A não apresentação dos documentos solicitados, apesar de expressa determinação judicial, impediu o saneamento do processo e a verificação dos pressupostos mínimos para o prosseguimento da ação.
A condição de idosa e a alegação de analfabetismo da autora, embora relevantes para a análise da vulnerabilidade, não a eximem de cumprir com as determinações processuais básicas ou de justificar a impossibilidade de fazê-lo. Pelo contrário, a vulnerabilidade da parte torna ainda mais premente a necessidade de o magistrado verificar a autenticidade da demanda e a real ciência da parte sobre o processo, como forma de proteção à própria parte e ao sistema. A inércia em apresentar os documentos solicitados impede a verificação da regularidade formal do contrato e a análise de mérito da demanda.
Nesse sentido é o entendimento deste Tribunal de Justiça do Piauí:
"RECURSO DE APELAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE JUNTADA DE DOCUMENTOS COMPLEMENTARES. DEMANDAS PREDATÓRIAS. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. I. Apelação interposta em face de sentença que extinguiu o processo sem resolução do mérito, em razão do descumprimento da determinação judicial para a juntada de documentos essenciais, incluindo procuração pública atualizada, comprovante de residência e declaração de pobreza. (…) O magistrado possui o dever de prevenir abusos processuais e reprimir demandas predatórias, conforme estabelece o art. 139, III, do CPC, incluindo a adoção de medidas voltadas ao controle do desenvolvimento regular do processo. O ajuizamento de demandas predatórias, caracterizadas por teses genéricas em massa, prejudica o contraditório, a ampla defesa e a celeridade processual, comprometendo o funcionamento do Judiciário. A determinação de apresentação de procuração pública para pessoas analfabetas e documentos comprobatórios visou garantir a legitimidade das demandas e prevenir fraudes, não se configurando medida desproporcional diante da suspeita de litigância predatória. A ausência de emenda à inicial dentro do prazo legal enseja, conforme o art. 321, parágrafo único, do CPC, o indeferimento da petição inicial e a consequente extinção do processo sem resolução do mérito. A decisão proferida respeita os princípios processuais da vedação à decisão surpresa, do dever de cooperação e da celeridade processual. IV. Recurso desprovido." (TJPI, Apelação Cível: 0801799-78.2023.8.18.0061, Relator: José James Gomes Pereira, Data de Julgamento: 20/03/2025, 2ª Câmara Especializada Cível, Data de Publicação: 20/03/2025).
III – DISPOSITIVO
Ante o exposto e em consonância com o entendimento dominante do Superior Tribunal de Justiça (Tema 1198), das Notas Técnicas do Tribunal de Justiça do Piauí (NT06/2023 e NT08/2023) e da Recomendação CNJ nº 159/2024, CONHEÇO do recurso de apelação e a ele NEGO PROVIMENTO, mantendo incólume a sentença de primeiro grau que extinguiu o processo sem resolução do mérito.
Custas e honorários recursais pela Apelante, fixados em 15% (quinze por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do Art. 85, § 11, do CPC/15, cuja exigibilidade ficará suspensa em razão da concessão da justiça gratuita (Art. 98, § 3º, do CPC/15).
Publique-se. Intimem-se.
CUMPRA-SE.
TERESINA-PI, 27 de agosto de 2025.
DESEMBARGADOR ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Relator
0801288-59.2022.8.18.0047
Órgão JulgadorDesembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Órgão Julgador Colegiado1ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorROSA ALVES DA SILVA
RéuBANCO VOTORANTIM S.A.
Publicação27/08/2025