poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
PROCESSO Nº: 0800690-84.2022.8.18.0054
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Cartão de Crédito, Práticas Abusivas]
APELANTE: JOAO GUEDES DE CARVALHO
APELADO: BANCO BRADESCO S.A.
DECISÃO TERMINATIVA
EMENTA: DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO. CONTRATAÇÃO DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO COM RESERVA DE MARGEM CONSIGNÁVEL (RMC). AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA CONTRATAÇÃO E TRANSFERÊNCIA DE VALORES. NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. SÚMULA 18 TJPI. DESCONTOS INDEVIDOS. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. TERMO INICIAL. ÚLTIMO DESCONTO INDEVIDO. DANO MORAL IN RE IPSA CONFIGURADO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO EM DOBRO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ AFASTADA. APELAÇÃO DO BANCO CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA. APELAÇÃO ADESIVA DO AUTOR CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA.
Trata-se de Apelação Cível interposta por BANCO BRADESCO S.A. em face de sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Inhuma/PI. A referida sentença julgou procedentes os pedidos formulados na Ação Declaratória de Inexistência de Relação Contratual c/c Repetição de Indébito e Indenização por Danos Morais ajuizada por JOAO GUEDES DE CARVALHO em desfavor do BANCO BRADESCO S.A.
Em sua exordial, o Autor, JOAO GUEDES DE CARVALHO, pensionista e idoso, alegou ter sido surpreendido com descontos em seu benefício previdenciário. Tais descontos, segundo o Autor, eram referentes a um contrato de cartão de crédito consignado com reserva de margem consignável (RMC) de nº 20160309377060584000, que não reconhece.
O Autor sustentou a nulidade do contrato por ausência de comprovação da efetiva transferência dos valores pelo Banco. Por isso, requereu a declaração de nulidade do contrato, a restituição em dobro dos valores indevidamente descontados e indenização por danos morais.
O Banco Bradesco S.A., em contestação, defendeu a validade e regularidade da contratação, a efetiva disponibilização dos valores, a ocorrência de prescrição e a litigância de má-fé do Autor.
A sentença de primeiro grau declarou a inexistência da relação jurídica do contrato, condenou o Banco à restituição em dobro dos valores indevidamente descontados (R$ 5.747,50) e ao pagamento de indenização por danos morais (R$ 2.000,00), e afastou a condenação do Autor por litigância de má-fé.
O Banco Bradesco S.A. interpôs recurso de apelação buscando a reforma integral da sentença, reiterando seus argumentos de mérito e a alegação de litigância de má-fé do Autor.
Por sua vez, o Autor, JOAO GUEDES DE CARVALHO, interpôs apelação adesiva buscando a majoração dos danos morais para R$ 10.000,00 e dos honorários advocatícios para 20% sobre o valor da condenação.
O recurso de apelação do Banco e a apelação adesiva do Autor foram recebidos no duplo efeito.
É o relato necessário. DECIDO.
O presente recurso comporta julgamento monocrático, nos termos do Art. 932, inciso V, do Código de Processo Civil, porquanto a matéria em discussão encontra-se pacificada por súmula e entendimento dominante deste Egrégio Tribunal de Justiça, bem como do Superior Tribunal de Justiça, conforme será demonstrado.
Inicialmente, impende destacar que a relação jurídica estabelecida entre as partes é de consumo, atraindo a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Conforme a Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça, "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras".
A hipossuficiência do consumidor, aliada à verossimilhança de suas alegações, autoriza a inversão do ônus da prova, nos termos do Art. 6º, inciso VIII, do CDC. Este entendimento é corroborado pela Súmula 26 do TJPI, que dispõe:
"Nas causas que envolvem contratos bancários, aplica-se a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (CDC, art, 6º, VIII) desde que comprovada sua hipossuficiência em relação à instituição financeira, entretanto, não dispensa que o consumidor prove a existência de indícios mínimos do fato constitutivo de seu direito, de forma voluntária ou por determinação do juízo."
No caso em tela, o Autor, na condição de pensionista e idoso, demonstra evidente hipossuficiência técnica e informacional. Ele apresentou indícios mínimos do seu direito ao comprovar os descontos em seu benefício previdenciário.
A controvérsia central reside na validade do contrato de mútuo bancário. Conforme se verifica nos autos, o Banco Bradesco S.A. não apresentou o contrato de nº 20160309377060584000 com a assinatura do Autor, tampouco comprovou a efetiva transferência dos valores para a conta de sua titularidade. Tal ausência é um vício insanável, que acarreta a nulidade do negócio jurídico.
Este Egrégio Tribunal de Justiça, por meio de sua Súmula 18, pacificou o entendimento sobre a matéria:
"A ausência de transferência do valor do contrato para conta bancária de titularidade do mutuário enseja a declaração de nulidade da avença e seus consectários legais e pode ser comprovada pela juntada aos autos de documentos idôneos, voluntariamente pelas partes ou por determinação do magistrado nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil."
Portanto, a ausência de comprovação da contratação e da efetiva transferência dos valores é, por si só, suficiente para declarar a nulidade do negócio jurídico, tornando os descontos realizados indevidos.
O Apelado (Banco Bradesco S.A.) arguiu a prescrição quinquenal da pretensão do Autor a partir do primeiro desconto. No entanto, o Art. 27 do CDC estabelece que o prazo prescricional de cinco anos para a reparação de danos por fato do produto ou serviço se inicia a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.
A jurisprudência deste Tribunal de Justiça tem se alinhado ao entendimento de que, em casos de descontos indevidos em relações de trato sucessivo, o termo inicial do prazo prescricional é a data do último desconto indevido. Nesse sentido, o recente julgado:
"PRESCRIÇÃO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRAZO QUINQUENAL. TERMO INICIAL. DATA DO ÚLTIMO DESCONTO INDEVIDO. SENTENÇA ANULADA. RECURSO PROVIDO." (TJPI, Apelação Cível - 0801856-41.2023.8.18.0047, Relator: João Gabriel Furtado Baptista, Julgamento: 08/01/2025)
Considerando que o Autor alega ter tomado ciência dos descontos indevidos apenas em 09/2022 (conforme extrato do INSS de ID 33505854 no processo de origem) e que a ação foi ajuizada em 27/10/2022, não há que se falar em prescrição da pretensão autoral.
A jurisprudência é uníssona em reconhecer que a realização de descontos indevidos em benefício previdenciário configura dano moral in re ipsa, ou seja, o dano é presumido pela própria ocorrência do ato ilícito, dada a natureza alimentar da verba e o impacto na dignidade do consumidor.
"APELAÇÃO CÍVEL. ASSOCIAÇÃO DE APOSENTADOS. FILIAÇÃO NÃO COMPROVADA. DESCONTO INDEVIDO EM BENEFÍCIO PREVIDIÁRIO. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. CRITÉRIO DE FIXAÇÃO. Havendo desconto indevido em benefício previdenciário relativo à filiação à Associação de Aposentados não comprovada, é legítima a repetição de indébito, em dobro, na forma do artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. O desconto indevido em benefício previdenciário causa dano moral in re ipsa." (TJ-RO, Apelação Cível: 70086162020238220010, Relator: Des. Kiyochi Mori, Data de Julgamento: 20/08/2024)
No presente caso, a ausência de comprovação da contratação e a nulidade do contrato equivalem à inexistência do negócio jurídico, tornando os descontos realizados ilícitos e, consequentemente, gerando o dano moral.
No tocante aos danos morais, é necessário fazer a sua análise em conjunto com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Considerando o caráter compensatório para a vítima e o pedagógico-punitivo para o ofensor, impõe-se a fixação do quantum indenizatório para o patamar de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), em congruência com o que já fora decidido pela 1ª Câmara Especializada Cível deste Egrégio Tribunal de Justiça em caso análogo:
"8. O dano moral é presumido (in re ipsa) em hipóteses como a dos autos, em que há desconto indevido em benefício previdenciário, sendo fixada indenização no valor de R$ 5.000,00, quantia compatível com os parâmetros desta Corte, segundo os princípios da proporcionalidade e razoabilidade." (TJPI, Apelação Cível 0800646-90.2022.8.18.0078, Relator: HILO DE ALMEIDA SOUSA, 1ª Câmara Especializada Cível, Data 30/06/2025)
A correção monetária deve incidir desde a data do arbitramento judicial do quantum reparatório (data desta decisão - Súmula 362 do STJ) e os juros de mora devem ser contabilizados na ordem de um por cento (1%) ao mês a partir da data do evento danoso (Súmula 54 do STJ).
Declarada a nulidade do contrato e reconhecida a ilicitude dos descontos, a restituição dos valores pagos indevidamente é medida que se impõe. O Art. 42, parágrafo único, do CDC, estabelece a repetição do indébito em dobro:
"O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável."
A Súmula 35 do TJPI, já mencionada, expressamente prevê a devolução em dobro em casos de cobrança indevida de tarifas bancárias, quando há má-fé e inexistência de engano justificável.
No presente caso, a nulidade decorre de vício formal que o banco deveria ter observado, o que configura má-fé desde o início dos descontos. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EAREsp 676608/RS (Tema 929), pacificou o entendimento de que a repetição em dobro é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva, independentemente da natureza do elemento volitivo, modulando os efeitos para indébitos posteriores a 30/03/2021. Para os indébitos anteriores a essa data, a má-fé deve ser comprovada. No caso, a nulidade decorre de vício formal que o banco deveria ter observado, o que configura má-fé desde o início dos descontos.
A restituição em dobro dos valores indevidamente descontados deverá ser apurada na fase de cumprimento de sentença. Sobre este valor, deverá incidir juros de mora e correção monetária pelo IPCA a partir de cada desembolso, isto é, da data do prejuízo, em conformidade com a Súmula 43 do STJ, até a data do efetivo pagamento.
O Apelado (Banco Bradesco S.A.) requereu a condenação do Apelante (JOAO GUEDES DE CARVALHO) por litigância de má-fé, alegando alteração da verdade dos fatos e ajuizamento de diversas ações idênticas.
A litigância de má-fé, prevista nos Arts. 80 e 81 do CPC, exige a comprovação de dolo específico da parte em alterar a verdade dos fatos ou usar o processo para fim ilegal. A mera improcedência da demanda ou o ajuizamento de múltiplas ações, por si só, não configuram má-fé, especialmente quando o consumidor busca a tutela jurisdicional para proteger seus direitos.
O TJPI tem exigido prova cabal da má-fé para a condenação, conforme julgado:
"A condenação às penalidades previstas nos arts. 79 a 81 do CPC, exige-se prova cabal da má-fé do autor, porém, não ficou demonstrada neste caso que a parte Apelante agiu com culpa grave ou dolo." (TJPI, Apelação Cível - 0801568-72.2022.8.18.0033, Relator: Dioclécio Sousa da Silva)
No caso, não há elementos suficientes que demonstrem o dolo do Autor em litigar de má-fé. A busca pela reparação de um suposto dano, mesmo que por meio de múltiplas ações, não se confunde com a intenção de induzir o juízo a erro. Assim, afasto a condenação por litigância de má-fé, mantendo a sentença de primeiro grau neste ponto.
1. Ante o exposto, com fundamento no Art. 932, inciso V, do Código de Processo Civil, e em consonância com a Súmula 18 do TJPI, DOU PARCIAL PROVIMENTO à Apelação Cível interposta por BANCO BRADESCO S.A. e DOU PARCIAL PROVIMENTO à Apelação Adesiva interposta por JOAO GUEDES DE CARVALHO para:
2. DECLARAR a nulidade do contrato de mútuo bancário nº 20160309377060584000, referente à contratação de cartão de crédito consignado com reserva de margem consignável (RMC).
3. CONDENAR o BANCO BRADESCO S.A. a restituir em dobro os valores indevidamente descontados do benefício previdenciário do Autor, a ser apurado em fase de cumprimento de sentença. Sobre este valor, deverá incidir juros de mora e correção monetária pelo IPCA a partir de cada desembolso, isto é, da data do prejuízo, em conformidade com a Súmula 43 do STJ, até a data do efetivo pagamento.
4. CONDENAR o BANCO BRADESCO S.A. ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). A correção monetária deve incidir desde a data do arbitramento judicial do quantum reparatório (data desta decisão - Súmula 362 do STJ) e os juros de mora devem ser contabilizados na ordem de um por cento (1%) ao mês a partir da data do evento danoso (Súmula 54 do STJ).
5. AFASTAR a condenação do Autor por litigância de má-fé.
6. Considerando a sucumbência recíproca, nos termos do Art. 86 do Código de Processo Civil, as custas processuais e os honorários advocatícios serão proporcionalmente distribuídos entre as partes. Fixo os honorários advocatícios em 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação para o patrono do Autor, e em 10% (dez por cento) sobre o proveito econômico obtido pelo Banco (correspondente à redução da condenação por danos morais) para o seu patrono, vedada a compensação.
Publique-se. Intimem-se.
CUMPRA-SE.
TERESINA-PI, 31 de julho de 2025.
Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Relator
0800690-84.2022.8.18.0054
Órgão JulgadorDesembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Órgão Julgador Colegiado1ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalPráticas Abusivas
AutorJOAO GUEDES DE CARVALHO
RéuBANCO BRADESCO S.A.
Publicação25/08/2025