poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
PROCESSO Nº: 0801292-96.2022.8.18.0047
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Inclusão Indevida em Cadastro de Inadimplentes, Indenização por Dano Material, Empréstimo consignado]
APELANTE: ROSA ALVES DA SILVA
APELADO: BANCO DO BRASIL SA
REPRESENTANTE: BANCO DO BRASIL SA
DECISÃO MONOCRÁTICA
Ementa: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. EXIGÊNCIA DE PROCURAÇÃO PÚBLICA E COMPROVANTE DE RESIDÊNCIA ATUALIZADO. FORMALISMO EXCESSIVO. AFRONTA ÀS SÚMULAS 32, 34 E 37 TJPI E À JURISPRUDÊNCIA DO STJ. NULIDADE DA SENTENÇA. RECURSO PROVIDO.
Apelação Cível interposta por parte autora contra sentença que extinguiu o processo sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, IV, do CPC, em ação de inexistência de débito, repetição de indébito e indenização por danos morais, ajuizada em razão de descontos indevidos em benefício previdenciário. O juízo a quo condicionou o prosseguimento da ação à apresentação de procuração pública ou com firma reconhecida e de comprovante de residência atualizado em nome da parte, diante de suspeita de demanda predatória.
Há três questões em discussão:
(i) definir se a exigência de comprovante de residência atualizado e em nome da parte autora constitui excesso de formalismo;
(ii) estabelecer se é legítima a determinação de procuração pública para pessoa analfabeta, em detrimento da procuração particular com assinatura a rogo e duas testemunhas prevista no art. 595 do CC;
(iii) determinar se, diante de suspeita de advocacia predatória, a extinção do processo sem resolução do mérito configura medida proporcional e adequada.
A exigência de comprovante de residência atualizado e em nome próprio configura formalismo excessivo, pois o art. 319, II, do CPC exige apenas a indicação do domicílio e residência, admitindo-se declaração de endereço ou documento em nome de terceiros, salvo prova de falsidade.
A imposição de procuração pública ou com firma reconhecida à parte analfabeta contraria o art. 595 do CC e a Súmula 32 do TJPI, que reconhecem a validade da procuração particular com assinatura a rogo e duas testemunhas.
O entendimento consolidado do STJ (REsp 1262132/SP) é no sentido de que apenas documentos essenciais à relação jurídica controvertida podem ser exigidos, não cabendo formalismos desproporcionais que impeçam o acesso à justiça.
Embora a suspeita de advocacia predatória autorize cautelas judiciais (Súmula 33 TJPI), a extinção prematura do processo sem resolução de mérito viola os princípios da proporcionalidade e da primazia do julgamento de mérito.
A jurisprudência local, consolidada na Súmula 34 TJPI, orienta que, havendo dúvida quanto à representação, o magistrado deve designar audiência para ratificação do mandato, e não extinguir o feito.
Recurso provido.
Tese de julgamento:
A exigência de comprovante de residência atualizado e em nome próprio constitui formalismo excessivo, bastando a declaração de domicílio prevista no art. 319, II, do CPC.
A procuração particular com assinatura a rogo e duas testemunhas supre a exigência de instrumento público para representação de parte analfabeta, conforme art. 595 do CC e Súmula 32 TJPI.
A extinção do processo sem resolução do mérito por suspeita de advocacia predatória é medida desproporcional, devendo o magistrado adotar meios menos gravosos, como a audiência de ratificação do mandato, nos termos da Súmula 34 TJPI.
Trata-se de Apelação Cível interposta por ROSA ALVES DA SILVA em face da sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Cristino Castro/PI, que, nos autos da Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídica c/c Reparação por Danos Morais e Materiais e Repetição de Indébito, sob o nº 0801292-96.2022.8.18.0047, indeferiu a petição inicial e julgou extinto o processo sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC).
A parte autora ajuizou a ação alegando sofrer descontos indevidos em seu benefício previdenciário, decorrentes de contrato de empréstimo consignado (nº 874875223) que afirma não ter pactuado, no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais), com parcelas de R$ 90,77 (noventa reais e setenta e sete centavos), e cuja finalização dos descontos ocorreria em 10/2022 (ID 8800149). Requereu, dentre outros pedidos, a declaração de nulidade do contrato, a repetição do indébito em dobro e indenização por danos morais.
Em sua decisão, o magistrado de primeiro grau destacou a fundadas suspeitas de que a demanda se enquadraria como "predatória", citando a Recomendação nº 127 do CNJ e a Nota Técnica nº 06 do CIJEPI. Diante disso, determinou a intimação da parte autora para que, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, juntasse instrumento de mandato atualizado com firma reconhecida ou procuração pública (em caso de analfabetismo), bem como comprovante de residência atualizado (últimos 03 meses) em seu nome, para aferir a competência territorial e afastar a suspeita de demanda predatória (ID 21768252). O descumprimento da determinação, levou à extinção do processo sem resolução do mérito.
A Apelante, em suas razões recursais (ID 21768258), sustentou que a sentença merece reforma por excesso de formalismo. Argumentou que a exigência de procuração pública para pessoa analfabeta é desnecessária, sendo suficiente a procuração "a rogo" com duas testemunhas, conforme o artigo 595 do Código Civil e jurisprudência consolidada do TJPI e CNJ. Aduziu, ainda, que a exigência de comprovante de residência em nome próprio e atualizado também configura excesso de formalismo, uma vez que o artigo 319, inciso II, do CPC, exige apenas a indicação do domicílio e residência do autor, não sua comprovação formal e nominativa. Ressaltou que a inércia da parte em atualizar tal documento não deveria obstar o regular prosseguimento do feito, e que a extinção prematura da ação viola o princípio da primazia do julgamento de mérito e o direito fundamental de acesso à justiça.
O Apelado apresentou contrarrazões (ID 21768260), pugnando pela manutenção da sentença. Preliminarmente, impugnou a gratuidade da justiça concedida à Apelante e arguiu a falta de interesse de agir por ausência de tentativa de solução extrajudicial da demanda. Reiterou a tese de advocacia predatória, defendendo a legitimidade das exigências do juízo de primeiro grau como medida de cautela. No mérito, defendeu a validade da contratação, a inexistência de danos morais e a inaplicabilidade da repetição do indébito em dobro.
O recurso foi recebido em seus efeitos devolutivo e suspensivo (ID 9185803). O Ministério Público do Piauí manifestou-se pela desnecessidade de intervenção no feito (ID 9940450).
É o relatório.
Presentes os pressupostos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade recursal, notadamente a tempestividade (art. 1.003, § 5º, do CPC), o cabimento (art. 1.009 do CPC), o preparo dispensado em razão da gratuidade de justiça deferida à apelante (art. 1.007, § 1º, do CPC) e a legitimidade e interesse recursal, CONHEÇO da presente Apelação Cível.
Ademais, a presente decisão monocrática encontra amparo no artigo 932, inciso V, do Código de Processo Civil, que autoriza o relator a dar provimento a recurso se a decisão recorrida for contrária a súmula do próprio tribunal ou a acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos. No caso em tela, conforme será demonstrado, a sentença objurgada divergiu de entendimentos já pacificados, inclusive sumulados, por este Egrégio Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça.
O cerne da controvérsia reside na adequação da sentença que extinguiu o feito sem resolução do mérito, sob o fundamento de não cumprimento das determinações judiciais para apresentação de procuração pública/com firma reconhecida e comprovante de residência atualizado, em razão de suspeita de demanda predatória.
1. Da Exigência de Comprovante de Residência Atualizado
O Juízo de primeiro grau considerou insuficiente o comprovante de residência apresentado pela apelante. Contudo, a exigência de que o comprovante de residência esteja atualizado, desconsiderando outras formas de comprovação, configura um excesso de formalismo.
O artigo 319, inciso II, do Código de Processo Civil exige apenas a indicação do domicílio e residência do autor, não impondo a apresentação de prova documental nominativa para essa informação, a menos que haja fundada dúvida sobre o endereço fornecido. A extinção do processo por este motivo, sem que a veracidade do endereço informado fosse efetivamente questionada ou desmentida, fere os princípios da instrumentalidade das formas e da primazia do julgamento de mérito.
Este Tribunal de Justiça tem se posicionado reiteradamente nesse sentido. Conforme precedente análogo:
"A exigência de juntada de documentos complementares, como o comprovante de endereço atualizado, configura formalismo excessivo especialmente em ações consumeristas em que se alega fraude contratual e há hipossuficiência da parte autora."(TJPI – APELAÇÃO CÍVEL 0801155-65.2023.8.18.0052 – Relator: HAROLDO OLIVEIRA REHEM – 1ª Câmara Especializada Cível – Data 28/11/2024)
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento de que:
"O Superior Tribunal de Justiça entende que documentos indispensáveis à ação são apenas aqueles que se vinculam diretamente às condições da demanda ou ao mérito da relação jurídica questionada, não abrangendo exigências formais excessivas como a atualização de procuração ou comprovante de residência." (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 18/11/2014, DJe 03/02/2015).
2. Da Procuração pública ou com firma reconhecida para Pessoa Analfabeta
A determinação de apresentação de procuração pública ou com firma reconhecida para a parte analfabeta/semianalfabeta, também se revela como excesso de formalismo e desrespeito à legislação e à jurisprudência consolidada. O artigo 595 do Código Civil é claro ao permitir que, em contratos de prestação de serviço, quando uma das partes não souber ler nem escrever, o instrumento possa ser assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas.
Nesse aspecto, a Súmula 32 deste Tribunal de Justiça, aprovada recentemente, é categórica ao dispor:
"É desnecessária a apresentação de procuração pública pelo advogado de parte analfabeta para defesa de seus interesses em juízo, podendo ser juntada procuração particular com assinatura a rogo e duas testemunhas, na forma estabelecida no artigo 595 do Código Civil.”
Esta Súmula dirime a controvérsia, reconhecendo que a exigência de instrumento público, embora possa ser vista como uma medida de segurança, constitui um formalismo excessivo que onera desnecessariamente a parte e restringe o acesso à justiça.
A Súmula 37 TJPI, que trata dos contratos com pessoas não alfabetizadas, reforça o reconhecimento da adequação do art. 595 do Código Civil como critério de validade para atos jurídicos envolvendo pessoas não alfabetizadas, estendendo-se, por analogia e coerência do sistema, à representação processual.
"Os contratos firmados com pessoas não alfabetizadas, inclusive os firmados na modalidade nato digital, devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo artigo 595, do Código Civil.”
Considerando que a apelante alegou e comprovou a apresentação de procuração particular devidamente assinada pelo mesmo, a exigência de uma procuração pública ou reconhecimento de firma tornou-se desproporcional e indevida.
3. Da "Advocacia Predatória" e as Alternativas de Atuação Judicial
A preocupação com a “advocacia predatória” é legítima e tem sido objeto de atenção do Poder Judiciário, como demonstrado pela Nota Técnica nº 06/2023 do CIJEPI e pela Súmula 33 TJPI. A Nota Técnica do CIJEPI descreve as demandas predatórias como aquelas "judicializadas reiteradamente e, em geral, em massa, contendo teses genéricas, desprovidas, portanto, das especificidades do caso concreto, havendo alteração apenas quanto às informações pessoais da parte, de forma a dificultar o exercício do contraditório e da ampla defesa". A Súmula 33 TJPI endossa a legitimidade de exigência de documentos nessas situações:
"Em caso de fundada suspeita de demanda repetitiva ou predatória, é legítima a exigência dos documentos recomendados pelas Notas Técnicas do Centro de Inteligência da Justiça Estadual Piauiense, com base no artigo 321 do Código de Processo Civil.”
Contudo, embora o Juízo tenha legitimidade para exigir providências que confirmem a regularidade da demanda, a consequência da não observância dessas providências deve ser proporcional e não cercear o acesso à justiça. O Conselho Nacional de Justiça também recomenda aos tribunais a adoção de cautelas para coibir a judicialização predatória, mas sem acarretar o cerceamento de defesa (Recomendação nº 127 – CNJ, art. 1º).
A Nota Técnica nº 06/2023 do CIJEPI lista diversas medidas que podem ser adotadas pelo magistrado para coibir a litigância predatória, como exigir apresentação de procuração e comprovante de endereço atualizado, determinar a apresentação de extrato bancário, ou intimar pessoalmente a parte autora para esclarecimentos. No entanto, a simples suspeita não pode justificar medidas extremas como a extinção do processo sem resolução do mérito, especialmente quando há meios menos gravosos e mais adequados para sanar as eventuais irregularidades ou confirmar a autenticidade da representação.
Nesse contexto, a Súmula 34 TJPI aponta um caminho mais equilibrado para lidar com essa situação:
"Estando o magistrado ou magistrada diante de indícios de demanda repetitiva ou predatória, mesmo com manifestação de desinteresse na realização de audiência, é legítima a designação de audiência para ratificação do mandato, com o comparecimento da parte e o advogado perante o juízo.”
Esta súmula oferece uma ferramenta eficaz e garantista: a audiência de ratificação. Em vez de extinguir o processo por não cumprimento de exigências que se revelaram desnecessárias (como a procuração pública para analfabeto, em face da Súmula 32 TJPI), ou excessivamente formais (como o comprovante de residência nominativo e atualizado, em face da jurisprudência deste E. TJPI e do STJ), o Juízo poderia ter convocado a parte e seu advogado para uma audiência, permitindo a ratificação do mandato e o esclarecimento de eventuais dúvidas sobre a legitimidade da demanda. Este procedimento preservaria o direito de acesso à justiça e o devido processo legal, ao mesmo tempo em que atenderia à preocupação com a litigância predatória.
Diante do exposto, verifica-se que a sentença que extinguiu o processo por não cumprimento das determinações judiciais padece de error in judicando. As exigências impostas confrontam diretamente o entendimento sumulado deste E. Tribunal (Súmulas 32, 34 e 37 TJPI) e a jurisprudência consolidada, constituindo formalismo excessivo e cerceamento do direito de acesso à justiça. O processo deve retornar à origem para que tenha seu regular processamento, garantindo-se à apelante o direito à apreciação de seu pedido, sem que formalidades desnecessárias impeçam o acesso à tutela jurisdicional.
Ante o exposto, e em consonância com a jurisprudência desta Egrégia Corte e do Superior Tribunal de Justiça, com destaque para as Súmulas 32, 33, 34 e 37 do Tribunal de Justiça do Piauí, com fundamento no artigo 932, inciso V, do Código de Processo Civil, VOTO no sentido de CONHECER do recurso de Apelação Cível e DAR-LHE PROVIMENTO para:
ANULAR a r. sentença de ID 21768256, que extinguiu o processo sem resolução do mérito.
DETERMINAR o retorno dos autos ao Juízo de origem da Vara Única da Comarca de Cristino Castro/PI, para o regular processamento do feito, devendo o magistrado, caso persista a suspeita de demanda predatória ou irregularidade na representação, adotar as providências menos gravosas, como a designação de audiência para ratificação do mandato, com o comparecimento da parte e o advogado perante o juízo, nos termos da Súmula 34 TJPI, em vez da extinção prematura.
CONDENAR o apelado (BANCO DO BRASIL S.A.) ao pagamento das custas processuais recursais. Deixo de fixar honorários recursais, visto que não houve fixação de honorários de sucumbência na primeira instância em razão da extinção do processo sem resolução do mérito.
Publique-se. Intime-se. Cumpra-se.
TERESINA-PI, 25 de agosto de 2025.
0801292-96.2022.8.18.0047
Órgão JulgadorDesembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Órgão Julgador Colegiado1ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorROSA ALVES DA SILVA
RéuBANCO DO BRASIL SA
Publicação25/08/2025