Decisão Terminativa de 2º Grau

Empréstimo consignado 0800938-11.2023.8.18.0088


Decisão Terminativa

poder judiciário 
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

PROCESSO Nº: 0800938-11.2023.8.18.0088
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Empréstimo consignado, Repetição do Indébito]
APELANTE: JOSE ANTONIO DA SILVA PINTO
APELADO: BANCO C6 S.A., BANCO FICSA S/A.


JuLIA Explica

DECISÃO TERMINATIVA

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE CONTRATUAL C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. ALEGAÇÃO DE ANALFABETISMO. EXISTÊNCIA DE ASSINATURAS ANTERIORES. DISTINGUISHING DA SÚMULA 30/TJPI E SÚMULA 37/TJPI. VALIDADE DA CONTRATAÇÃO ELETRÔNICA. INSTRUÇÃO NORMATIVA PRES/INSS Nº 138/2022. AUSÊNCIA DE PROVA DA FRAUDE OU VÍCIO DE CONSENTIMENTO. ÔNUS DA PROVA DA PARTE AUTORA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. AUSÊNCIA DE DOLO INEQUÍVOCO. AFASTAMENTO DA MULTA PROCESSUAL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

 

RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Cível interposta por BANCO C6 S.A. (atual BANCO C6 CONSIGNADO S.A.) contra a sentença proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Capitão de Campos/PI, nos autos da "Ação Declaratória de Nulidade de Relação Contratual c/c Repetição de Indébito e Indenização por Danos Morais" (Processo nº 0800938-11.2023.8.18.0088), que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados por JOSE ANTONIO DA SILVA PINTO (Autor). A sentença declarou a inexistência do contrato de empréstimo consignado, determinou a cessação dos descontos, condenou o Banco ao pagamento de R$ 3.000,00 a título de danos morais e à restituição em dobro dos valores indevidamente descontados, sem, contudo, condenar o Autor por litigância de má-fé.

Em sua petição inicial (ID 21897674, p. 155), o Autor alegou ser pessoa analfabeta e que foi surpreendido por descontos em seu benefício previdenciário referentes a um empréstimo que desconhecia, levantando suspeita de fraude. Sustentou que o contrato não foi formalizado mediante os requisitos legais previstos no Art. 595 do Código Civil para pessoas analfabetas.

O Banco C6 S.A. apresentou contestação (ID 21897690, p. 89), defendendo a regularidade da contratação por meio eletrônico, com biometria facial e geolocalização, e a efetiva transferência dos valores para a conta do Autor. Juntou o instrumento contratual (ID 21897693, p. 161) e comprovante de transferência (ID 21897696, p. 141) para comprovar a disponibilização dos recursos e as movimentações da conta do Autor. Argumentou que a condição de analfabeto não invalida o negócio jurídico e que o Autor agiu com má-fé, sendo litigante habitual.

O Autor apresentou réplica (ID 21897767, p. 49), reiterando a tese de analfabetismo e a nulidade do contrato.

A sentença de primeiro grau (ID 21897765, p. 56) considerou que o método de assinatura eletrônica do banco não garantia a identificação inequívoca do signatário, especialmente para uma pessoa analfabeta, e, por isso, declarou a nulidade do contrato.

Inconformado, o Banco Apelante interpôs o presente recurso (ID 21897772, p. 24), reiterando os fundamentos lançados na contestação, buscando a reforma da sentença para que sejam julgados improcedentes os pedidos do Autor, além de requerer a condenação do Autor por litigância de má-fé.

O Autor Apelado apresentou contrarrazões (ID 21897775, p. 21), pugnando pelo improvimento do recurso e a manutenção da sentença.

O recurso foi recebido no duplo efeito (ID 23096109).

É o relatório. DECIDO.


FUNDAMENTAÇÃO

A questão central posta em exame nesta Apelação Cível consiste em verificar a correção da sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais de declaração de nulidade contratual, repetição de indébito e indenização por danos morais, com base na alegação de analfabetismo do Autor.


I. Do Objeto do Recurso e da Aplicação do Código de Defesa do Consumidor

A relação jurídica entre as partes é de consumo, atraindo a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), que estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, nos termos do Art. 14 do CDC. No que tange à inversão do ônus da prova, a Súmula 26 do TJPI dispõe que: "Nas causas que envolvem contratos bancários, aplica-se a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (CDC, art, 6º, VIII) desde que comprovada sua hipossuficiência em relação à instituição financeira, entretanto, não dispensa que o consumidor prove a existência de indícios mínimos do fato constitutivo de seu direito, de forma voluntária ou por determinação do juízo" (TJPI, Súmula 26).


II. Da Alegação de Analfabetismo e do Distinguishing das Súmulas 30 e 37 do TJPI

A sentença de primeiro grau fundamentou a nulidade do contrato na premissa de que o Autor seria pessoa analfabeta e que o método de contratação eletrônica não supria as formalidades exigidas para essa condição. As Súmulas 30 e 37 do TJPI, de fato, corroboram essa tese ao dispor sobre a nulidade de contratos de mútuo bancário atribuídos a pessoas analfabetas que não observam as formalidades do Art. 595 do Código Civil (assinatura a rogo e duas testemunhas).

Entretanto, a análise dos autos revela elementos que infirmam a premissa de que o Apelado seria analfabeto. Conforme se observa na identidade do Apelado, expedida em 19/08/1996 (ID 21897676, p. 160), consta uma assinatura regular. Da mesma forma, na procuração outorgada aos seus advogados (ID 21897675, p. 159), também há uma assinatura atribuída ao Apelado, que se assemelha àquela constante em seu documento de identidade. A alegação de analfabetismo, portanto, não encontra respaldo nas provas documentais apresentadas pelo próprio Autor.

Diante da existência de assinaturas anteriores do Apelado que demonstram sua alfabetização, a tese de analfabetismo, que seria o fundamento para a aplicação das Súmulas 30 e 37 do TJPI, resta descaracterizada. Opera-se, assim, o distinguishing, técnica de argumentação jurídica que permite afastar a aplicação de um precedente (no caso, as Súmulas 30 e 37) quando as circunstâncias fáticas do caso concreto são substancialmente diferentes daquelas que o fundamentaram. No presente caso, a premissa fática essencial para a incidência das referidas Súmulas, qual seja, a condição de analfabetismo, não foi comprovada.


III. Da Validade da Contratação Eletrônica e da Manifestação de Vontade

Superada a alegação de analfabetismo, a validade do contrato de empréstimo consignado celebrado por meio eletrônico deve ser analisada sob a ótica da legislação geral aplicável às assinaturas eletrônicas e às contratações digitais. A Lei nº 14.063/2020, em seu Art. 4º, estabelece que as assinaturas eletrônicas, incluindo aquelas que permitem identificar o signatário e associar dados a outros dados em formato eletrônico, caracterizam o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular. A biometria facial, como método de identificação, pode se enquadrar como "assinatura eletrônica avançada" (inciso II), desde que atenda aos requisitos de univocidade e controle exclusivo do signatário.

Adicionalmente, a Instrução Normativa PRES/INSS Nº 138, de 10 de novembro de 2022, que regulamenta os empréstimos consignados para beneficiários da Previdência Social, corrobora a validade da contratação eletrônica. Seu Art. 4º, inciso VIII, define o reconhecimento biométrico como uma rotina que garante a integridade, autenticidade e titularidade da operação. O Art. 5º, incisos II e III, prevê expressamente que o desconto pode ser formalizado por contrato assinado com uso de reconhecimento biométrico. Essa norma específica para o tipo de contrato em discussão reforça a legitimidade dos métodos eletrônicos de contratação utilizados pelo Banco.

O Banco Apelante colacionou aos autos o instrumento contratual (ID 21897693, p. 161), logs de interação (ID 21897691, p. 123), dossiês de contratação com dados de biometria facial e prova de vida (ID 21897694, p. 161) e comprovante de transferência do valor contratado (ID 21897696, p. 141), demonstrando a efetiva disponibilização dos recursos na conta do Apelado. Além disso, os dados de geolocalização da contratação apontam para Campo Maior/PI (ID 21897694, p. 161), local coerente com o endereço do Autor e a presença de correspondente bancário na região, conforme o site da instituição.

A jurisprudência deste Tribunal de Justiça tem reconhecido a validade de contratos celebrados digitalmente mediante biometria facial e identificação digital, desde que observados os requisitos do Art. 104 do Código Civil, que exige agente capaz, objeto lícito e forma não defesa em lei. Nesse sentido:

"EMENTA: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE CONTRATAÇÃO. ASSINATURA ELETRÔNICA. RECONHECIMENTO FACIAL. VALIDADE DO CONTRATO. ÔNUS DA PROVA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. IMPROVIMENTO DO RECURSO. (…) Tese de julgamento: 1. O contrato de empréstimo consignado celebrado por meio eletrônico, com assinatura eletrônica por biometria facial e identificação digital, é válido e eficaz, salvo comprovação de fraude ou vício de consentimento. 2. O ônus da prova da inexistência da contratação recai sobre a parte autora, que deve demonstrar fato constitutivo de seu direito, nos termos do art. 373, I, do CPC. 3. A parte que deduz pretensão contrária a fatos incontroversos e altera a verdade dos autos incorre em litigância de má-fé, sujeitando-se às penalidades previstas no art. 81 do CPC." (TJPI, Apelação Cível 0800105-89.2018.8.18.0048, Relator: Francisco Gomes da Costa Neto, 4ª Câmara Especializada Cível, Julgamento: 01/06/2025).


IV. Da Comprovação da Contratação e da Ausência de Vício de Consentimento

No caso dos autos, o Apelado não se desincumbiu do ônus de comprovar a alegada fraude ou a existência de qualquer vício de consentimento que pudesse macular o negócio jurídico. A mera alegação de desconhecimento do contrato, sem provas robustas que a corroborem, não é suficiente para desconstituir a validade de um contrato eletrônico, especialmente quando o Banco apresentou elementos que demonstram a regularidade da contratação e a disponibilização dos valores.

"A inversão do ônus da prova não dispensa a comprovação mínima, pela parte autora, dos fatos constitutivos do seu direito." (TJPI, Apelação Cível 0802785-27.2020.8.18.0032, Relator: Juiz Convocado Antonio Soares dos Santos, 4ª Câmara Especializada Cível, Julgamento: 20/03/2025).

Dessa forma, tendo o Banco comprovado a regularidade da contratação e a disponibilização dos valores, e não havendo prova de fraude ou vício de consentimento, os descontos efetuados no benefício previdenciário do Apelado são legítimos, afastando-se os pedidos de declaração de nulidade, repetição de indébito e de indenização por danos morais.


V. Da Litigância de Má-fé

Por fim, quanto à condenação por litigância de má-fé, o Banco Apelante requereu a aplicação da multa ao Autor Apelado. Contudo, a caracterização da litigância de má-fé exige a demonstração inequívoca de dolo, má-fé ou deslealdade processual, não se presumindo tais elementos diante da ausência de provas nos autos. O Superior Tribunal de Justiça tem consolidado o entendimento de que a presunção de boa-fé é um princípio geral do direito, e a má-fé deve ser cabalmente provada.

"A caracterização da litigância de má-fé exige a demonstração inequívoca de dolo, má-fé ou deslealdade processual, nos termos do art. 80 do CPC, não se presumindo tais elementos diante da ausência de provas nos autos. (…) Em tais circunstâncias, torna-se irrazoável exigir que o mutuário, em condição de semianalfabetismo funcional, possa recordar com exatidão todas as operações financeiras debitadas de seu benefício previdenciário, ainda mais quando se trata de múltiplas consignações de pequena monta." (TJPI, Apelação Cível 0801799-78.2023.8.18.0061, Relator: José James Gomes Pereira, 2ª Câmara Especializada Cível, Julgamento: 20/03/2025).

A conduta do Apelado, ao buscar o Judiciário para questionar uma contratação que alegava desconhecer, não se reveste de dolo ou deslealdade processual inequívoca. Pode ser interpretada como uma busca por direitos em um cenário de confusão ou falta de clareza sobre as operações financeiras, e não como uma intenção deliberada de alterar a verdade dos fatos para obter vantagem indevida. Assim, o afastamento da condenação por litigância de má-fé em desfavor do Autor é medida que se impõe, caso tivesse sido aplicada na sentença de primeiro grau. Como a sentença de primeiro grau não aplicou tal multa, não há o que reformar neste ponto.


DISPOSITIVO

Diante do exposto, com fundamento no Art. 932, inciso IV, do Código de Processo Civil, e em conformidade com a fundamentação supra, DOU PARCIAL PROVIMENTO à Apelação Cível interposta pelo BANCO C6 S.A. para REFORMAR a sentença de primeiro grau e, por consequência, JULGAR IMPROCEDENTES os pedidos formulados por JOSE ANTONIO DA SILVA PINTO na petição inicial.

 

Condeno o Autor Apelado ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do Art. 85, § 2º, do CPC, cuja exigibilidade ficará suspensa em razão da concessão da justiça gratuita (Art. 98, § 3º, do CPC).

Intime-se.


Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquivem-se os autos.


CUMPRA-SE.

 

TERESINA-PI, 25 de agosto de 2025.

 

Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

Relator

(TJPI - APELAÇÃO CÍVEL 0800938-11.2023.8.18.0088 - Relator: ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA - 1ª Câmara Especializada Cível - Data 25/08/2025 )

Detalhes

Processo

0800938-11.2023.8.18.0088

Órgão Julgador

Desembargador ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

Órgão Julgador Colegiado

1ª Câmara Especializada Cível

Relator(a)

ANTONIO LOPES DE OLIVEIRA

Classe Judicial

APELAÇÃO CÍVEL

Competência

Câmaras Cíveis

Assunto Principal

Empréstimo consignado

Autor

JOSE ANTONIO DA SILVA PINTO

Réu

BANCO C6 S.A.

Publicação

25/08/2025