PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ
GABINETE Da DESEMBARGADORA LUCICLEIDE PEREIRA BELO
ORGÃO JULGADOR: 3ª Câmara Especializada Cível
APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) No 0802108-63.2023.8.18.0073
APELANTE: CORINA FERREIRA DOS SANTOS
APELADO: BANCO PAN S.A., BANCO PAN S.A.
RELATOR(A): Desembargadora LUCICLEIDE PEREIRA BELO
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. NULIDADE DE CONTRATO FIRMADO POR PESSOA ANALFABETA SEM AS FORMALIDADES PREVISTAS NO ART. 595, CC. ASSINATURA A ROGO, MAS SEM SUBSCRIÇÃO DE DUAS TESTEMUNHAS. SÚMULA 30/TJPI. DESCONTO INDEVIDO EM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO EM DOBRO. DANO MORAL IN RE IPSA. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA.
DECISÃO MONOCRÁTICA
I. RELATÓRIO
Trata-se de APELAÇÃO CÍVEL interposta por CORINA FERREIRA DOS SANTOS contra sentença proferida nos autos da AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO CC COM DANOS MORAIS ajuizada pela apelante em face do BANCO PAN S.A., ora apelado.
Em sentença, o d. juízo de 1º grau julgou extinta a demanda, COM resolução de mérito, nos seguintes termos:
Logo, diante do recebimento dos valores contratados, não observo qualquer nulidade no contrato, sob pena de incorrer a parte autora em flagrante enriquecimento ilícito.
Ante o exposto, nos termos do art. 487, I, do novo Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTE o pedido deduzido na inicial e, em consequência, declaro extinto o feito com resolução de mérito.
Em suas razões recursais, alegou a apelante, em síntese, que: No caso dos autos, o contrato de empréstimo foi firmado com pessoa analfabeta, porém, não cumpriu os requisitos necessários para sua validade. Diante do que expôs, requereu o provimento do recurso, para que seja reformada a sentença, julgados procedentes os pedidos contidos na inicial, afastada a penalidade de litigância de má-fé e de revogação da gratuidade processual.
Em suas contrarrazões, o apelado refutou a argumentação aduzida pela apelante, e requereu o desprovimento do recurso, para que seja mantida a sentença recorrida.
É o relatório.
II. FUNDAMENTAÇÃO
REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE
Recurso tempestivo e formalmente regular. Preparo dispensado em razão do autor apelante ser beneficiário da gratuidade processual. Preenchidos os demais requisitos necessários à admissibilidade recursal, CONHEÇO do apelo.
Não há questões preliminares. Passo ao mérito.
MÉRITO
O art. 932 do CPC prevê a possibilidade do relator proferir decisão monocrática para proceder ao julgamento do recurso nas seguintes hipóteses:
Art. 932. Incumbe ao relator:
IV - negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
No presente caso, a discussão diz respeito à validade de instrumento contratual de empréstimo consignado, firmado por analfabeto e que não atendeu aos requisitos formais de assinatura a rogo e de duas testemunhas, em conformidade com o art. 595, do Código Civil, matéria que se encontra sumulada no Tribunal de Justiça do Piauí, nos seguintes termos:
SÚMULA 30/TJPI - A ausência de assinatura a rogo e subscrição por duas testemunhas nos instrumento de contrato de mútuo bancário atribuídos a pessoa analfabeta torna o negócio jurídico nulo, mesmo que seja comprovada a disponibilização do valor em conta de sua titularidade, configurando ato ilícito, gerando o dever de repará-lo, cabendo ao magistrado ou magistrada, no caso concreto, e de forma fundamentada, reconhecer categorias reparatórias devidas e fixar o respectivo quantum, sem prejuízo de eventual compensação.
Assim, passo a apreciar o mérito do presente recurso, nos termos do art. 932, IV, “a”, CPC.
Pois bem. No caso em exame, pretende o recorrente a repetição do indébito e a fixação do quantum indenizatório pelos danos morais sofridos.
Compulsando os autos, verifica-se que o banco recorrido não comprovou em juízo a celebração do contrato ora impugnado com as formalidades legais exigidas para o analfabeto, entretanto, há prova de que a instituição financeira creditou o valor do empréstimo na conta corrente da autora recorrente, de modo que o contrato não pode ser considerado válido, nos termos da Súmula 30, do TJ/PI, ensejando o dever de reparação por danos materiais (repetição do indébito) e danos morais, que exsurgem in re ipsa.
Acerca da repetição em dobro, o Colendo STJ fixou a seguinte tese, no julgamento do EAREsp nº 676.608/RS: “A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida consubstancia conduta contrária à boa-fé objetiva”.
Contudo, a Corte Especial do STJ decidiu modular os efeitos da tese, restringindo a eficácia temporal dessa decisão, ponderando que, na hipótese de contratos de consumo que não envolvam a prestação de serviços públicos, o entendimento somente poderia ser aplicado aos débitos cobrados após a data da publicação do acórdão paradigma (EAREsp nº 676.608/RS), em 30/03/2021.
Porém, na sessão presencial por videoconferência realizada em 14 de agosto de 2024, no julgamento do Processo nº 0800432-52.2020.8.18.0084, em regime de ampliação de quórum, fui vencida em meu entendimento.
Assim, em razão dos precedentes desta 3ª Câmara Especializada Cível e do princípio da colegialidade, entendo que a repetição deve ocorrer integralmente em dobro.
No entanto, a fim de evitar o enriquecimento ilícito, evidencia-se a necessidade de retorno das partes ao status quo ante, de modo que a instituição financeira deverá restituir à parte requerente todos os descontos promovidos indevidamente no seu benefício, assim como a parte requerida deverá abater do valor de condenação o valor efetivamente pago, conforme TED juntado aos autos.
Vale ressaltar que o termo inicial para a incidência da correção monetária no valor a ser compensado, dá-se a partir da data do depósito. No que tange à incidência de juros de mora sobre os valores recebidos indevidamente pelo apelante e que serão compensados pelo apelado, deve ser ressaltado que esse montante não se refere a uma condenação imposta ao autor, mas sim de uma ressalva que permite ao banco compensar tais valores com aqueles efetivamente devidos. Desta forma, descabe falar em incidência de juros de mora sobre os valores a serem compensados.
No que tange aos prejuízos imateriais alegados, o desconto indevido pode gerar danos morais, bastando para isso que o consumidor seja submetido a um constrangimento ilegal, como a cobrança de valores atinentes a um contrato nulo, bem como por tratar-se de dedução efetuada em verba de caráter alimentar.
Ademais, na hipótese dos autos, é certo que o dever de indenizar resulta da própria conduta lesiva evidenciada, independendo de prova dos abalos psíquicos causados, pois, em casos tais, o dano é in re ipsa, isto é, decorre diretamente da ofensa, por comprovação do ilícito, que ficou sobejamente demonstrado nos autos.
O próprio STJ firmou entendimento no sentido de que “a concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato de violação (damnum in re ipsa). Verificado o evento danoso surge a necessidade de reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa)” (RT 746/183, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4ª Turma).
A respeito da temática, existem diversos julgados dos Tribunais Pátrios (verbi gratia, TJMS: AC nº 0802134-57.2019.8.12.0012, Rel. Des. Vilson Bertelli, 2ª Câmara Cível, j. 27/07/2020; e TJCE: APL nº 0000783-69.2017.8.06.0190, Rel. Des. Raimundo Nonato Silva Santos, 4ª Câmara de Direito Privado, j. 12/11/2019).
Por estas razões, com esteio na prova dos autos, entendo ser devida a reparação por danos morais, em função das ações lesivas praticadas pela instituição financeira demandada.
Em continuidade, na fixação da indenização por danos morais, o magistrado deve agir com equidade, analisando a extensão do dano, as condições socioeconômicas e culturais dos envolvidos, as condições psicológicas das partes e o grau de culpa do agente, terceiro ou vítima. Tais critérios podem ser retirados dos artigos 944 e 945, ambos do CC, bem como do entendimento dominante do STJ.
Pacífico também o entendimento a respeito do caráter dúplice (compensatório/pedagógico) da indenização por danos morais, devendo o julgador, quando da sua fixação, se guiar pelas circunstâncias do caso concreto e pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de modo que seu valor não seja excessivo a ponto de gerar enriquecimento ilícito do ofendido, tampouco irrisório para estimular a prática danosa, sob pena de desvirtuamento da natureza do instituto do dano moral.
Vale dizer, deve ser quantia que não seja insignificante, a ponto de não compor o sentimento negativo experimentado pela vítima, e que não seja tão elevada, a ponto de provocar o seu enriquecimento sem causa.
Portanto, para que o arbitramento atenda aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a orientação de nossos Tribunais exige que seja feito a partir de dois dados relevantes, quais sejam, o nível econômico do ofendido e o porte econômico do ofensor, ambos cotejados com as condições em que se deu a ofensa.
Com efeito, considerando-se as condições das partes, o valor da indenização deve ser compatível com a expressão econômica e com o grau de culpa observado no ato, evidenciada, no caso, pela instituição financeira que realizou descontos no benefício previdenciário da parte autora sem qualquer lastro contratual válido.
Nestas condições, apreciadas todas as questões postas, entendo que o montante indenizatório de R$ 3.000,00 (três mil reais), atende aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, levando-se em consideração a realidade das partes, a situação econômica e as particularidades do caso.
Assim, pelas razões declinadas, a sentença a quo deve ser reformada.
III. DISPOSITIVO
Por todo o exposto, com fundamento no art. 932, V, “a”, CPC, CONHEÇO do recurso, para, no mérito, DAR-LHE PROVIMENTO, a fim de julgar procedentes os pedidos iniciais, nos termos do art. 487, I do CPC, para:
a) declarar a nulidade do contrato de empréstimo consignado referente aos autos;
b) condenar a requerida à restituição de forma dobrada dos descontos realizados, acrescidos de correção monetária e juros de mora de 1% ao mês a contar da data de cada desconto (Súmula 43, STJ), a ser apurado por simples cálculos aritméticos, não abrangidos os descontos efetuados anteriormente aos cinco anos que antecedem o ajuizamento da ação, posto que atingidos pela prescrição quinquenal; determinar a compensação da quantia depositada na conta do autor; e, b.1.) determinar a compensação dos valores a serem restituídos com os valores revertidos em favor da parte autora, atualizado monetariamente a contar do depósito.
c) condenar o banco a pagar a título de danos morais a quantia de R$ 3.000,00 (três mil reais), incidindo juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a partir da citação (arts. 405 e 406, do CC, e art. 161, § 1º, do CTN) e correção monetária desde a data do arbitramento judicial do quantum reparatório (enunciado n.º 362 da Súmula do STJ).
Em razão da inversão do julgado, custas e honorários sucumbenciais em 10% do valor da condenação, pela parte apelada.
Preclusas as vias impugnativas, dê-se baixa na distribuição e remetam-se os autos ao juízo de origem.
Teresina, 10 de janeiro de 2025
Desembargadora LUCICLEIDE PEREIRA BELO
Relatora
0802108-63.2023.8.18.0073
Órgão JulgadorDesembargadora LUCICLEIDE PEREIRA BELO
Órgão Julgador Colegiado3ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)LUCICLEIDE PEREIRA BELO
Classe JudicialAPELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorCORINA FERREIRA DOS SANTOS
RéuBANCO PAN S.A.
Publicação13/01/2025