poder judiciário
tribunal de justiça do estado do piauí
GABINETE DO Desembargador JOSÉ WILSON FERREIRA DE ARAÚJO JÚNIOR
PROCESSO Nº: 0804577-45.2022.8.18.0032
CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198)
ASSUNTO(S): [Interpretação / Revisão de Contrato, Indenização por Dano Material, Empréstimo consignado]
APELANTE: FRANCISCA ISAURA DE MATOS
APELADO: BANCO FICSA S/A.
DECISÃO TERMINATIVA
EMENTA. APELAÇÃO CÍVEL. EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS. INSTRUMENTO CONTRATUAL VÁLIDO. COMPROVANTE DE PAGAMENTO JUNTADO. SÚMULA Nº 18 DO TJPI. SÚMULA Nº 26 DO TJPI. SÚMULA Nº 37 DO TJPI. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA DA PARTE AUTORA E DE SEU ADVOGADO. IMPOSSIBILIDADE DE IMPOSIÇÃO DIRETA DE MULTA AO CAUSÍDICO. REDUÇÃO DO PERCENTUAL DA MULTA APLICADA À PARTE AUTORA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
I - RELATÓRIO
Trata-se de recurso de apelação interposto por Francisca Isaura de Matos em face de sentença (ID. 21552777) proferida pelo juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Valença/PI que, nos autos da Ação Declaratória ajuizada em desfavor do Banco C6, julgou improcedentes os pedidos formulados na inicial, nos termos do artigo 487, I, do CPC, condenando a parte autora e seu advogado em multa por litigância de má-fé no percentual de 5% sobre o valor da causa, bem como em custas processuais e honorários, fixados em 10%.
Nas razões recursais (ID. 21552780), a parte Apelante requer o provimento ao apelo, a fim de que, neste plano recursal, haja a reforma integral da sentença vergastada, para a procedência dos pedidos da inicial e, alternativamente, a exclusão da condenação em litigância de má-fé, bem como dos honorários sucumbenciais.
Em contrarrazões ao recurso (ID. 21552783), a entidade financeira afirma a regularidade da contratação e o não provimento do recurso.
Diante da recomendação do Ofício Círcular 174/2021 – OJOI/TJPI/PRESIDENCIA/GABJAPRE/GABJAPRES2, deixo de remeter os autos ao Ministério Público, por não vislumbrar interesse público que justifique sua atuação.
É o relatório. Decido.
II – DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Atendidos os pressupostos recursais intrínsecos (cabimento, interesse, legitimidade e inexistência de fato extintivo do direito de recorrer) e os pressupostos recursais extrínsecos (regularidade formal, tempestividade, e preparo), o recurso deve ser admitido, o que impõe o seu conhecimento.
Compulsando os autos, especificamente o extrato do benefício previdenciário (ID. 21552655) da Autora, observo que a apelante recebe, mensalmente, o valor bruto de R$ 1.100,00 (um mil e cem reais), demonstrando, portanto, a sua hipossuficiência e a consequente impossibilidade de arcar com despesas e custas processuais, razão pela qual faz jus a gratuidade de justiça.
III – DA FUNDAMENTAÇÃO
Conforme relatado, o Autor, ora Apelante, propôs a presente demanda buscando a anulação de contrato de empréstimo gerado em seu nome, bem como a condenação da instituição financeira ré ao pagamento de indenização por dano moral e repetição do indébito.
Pois bem.
Cumpre esclarecer, inicialmente, que o presente caso deve ser apreciado sob a égide do Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei nº 8.078/90, logo é imprescindível que se reconheça a vulnerabilidade do consumidor.
Nesse sentido, é o entendimento atual, tanto na doutrina como na jurisprudência, acerca da aplicação do CDC às operações bancárias, o que inclusive, restou sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme a redação:
Súmula 297 – STJ: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.
Consubstanciado no fato de tratar-se de relação de consumo, inviável impor à parte autora a produção de prova negativa, no sentido de comprovar a regularidade da contratação, cumprindo à parte ré, até mesmo porque tais descontos foram consignados em folha de pagamento, cabendo, portanto, ao requerido provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito da autora, perfazendo-se na situação sub examine como o contrato firmado entre as partes e a transferência do valor contratado, devendo juntá-los aos autos.
Nas referidas ações, em regra, é deferida em favor da parte autora a inversão do ônus da prova, em razão da hipossuficiência técnica financeira, a fim de que a instituição bancária requerida comprove a existência do contrato, bem como o depósito da quantia contratada.
Esta é uma questão exaustivamente debatida nesta E. Câmara, possuindo até mesmo disposição expressa na Súmula nº 26 deste TJPI, in litteris:
SÚMULA 26 – Nas causas que envolvem contratos bancários, aplica-se a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (CDC, art, 6º, VIII) desde que comprovada sua hipossuficiência em relação à instituição financeira, entretanto, não dispensa que o consumidor prove a existência de indícios mínimos do fato constitutivo de seu direito, de forma voluntária ou por determinação do juízo.
Dito isto, entendo ser cabível a aplicação do art. 6°, VIII do CDC, relativo à inversão do ônus da prova, considerando-se a capacidade, dificuldade ou hipossuficiência de cada parte, cabendo à instituição financeira, e não à parte autora, o encargo de provar a existência do contrato pactuado, capaz de modificar o direito do autor, segundo a regra do art. 373, II do Código de Processo Civil.
Na hipótese, insta consignar que o Código Civil estabelece requisitos para a formalização do contrato de prestação de serviços, especialmente para as pessoas em condição de analfabetismo. É o que se depreende da leitura do artigo 595 do diploma legal, abaixo transcrito:
Art. 595. No contrato de prestação de serviço, quando qualquer das partes não souber ler, nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas.
Em que pese a redação apresentada se referir ao contrato de prestação de serviços, a disciplina legal evidencia a capacidade do analfabeto para contratar, de uma forma geral, prevendo inclusive a forma de suprir sua assinatura, quando necessária à prática do ato jurídico. Assim, tratando-se de consumidor que se encontra impossibilitado de assinar, não é obrigatória a contratação por instrumento público. Contudo, optando-se pela forma escrita para realização do negócio jurídico, há que se observar algumas formalidades legais, quais sejam, a necessidade de assinatura a rogo e de duas testemunhas, conforme art. 595 do CC, o que, inclusive, já restou sumulado por este E. Tribunal de Justiça, in verbis:
TJPI/SÚMULA Nº 37: Os contratos firmados com pessoas não alfabetizadas, inclusive os firmados na modalidade nato digital, devem cumprir os requisitos estabelecidos pelo artigo 595, do Código Civil.
No caso dos autos, verifica-se que o banco demonstrou a existência do contrato nº 10014397590, no qual consta a aposição da digital do requerente, assinatura a rogo e de duas testemunhas, juntado em ID Num. 21552768, conforme a exigência legal para o reconhecimento da validade do instrumento contratual celebrado com o analfabeto.
Além disso, em análise minuciosa dos autos, verifica-se que o banco Apelado juntou documento demonstrativo de liberação do valor mediante comprovante de TED (ID Num. 21552770), o que corrobora a ciência quanto à contratação e eventual uso do crédito contratado.
Portanto, há comprovação nos autos do pagamento do valor contratado, consoante o entendimento sumulado neste E. Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, a saber, in verbis:
SÚMULA Nº 18 – A ausência de transferência do valor do contrato para conta bancária de titularidade do mutuário enseja a declaração de nulidade da avença e seus consectários legais e pode ser comprovada pela juntada aos autos de documentos idôneos, voluntariamente pelas partes ou por determinação do magistrado nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil.
Neste cenário, de fato, os documentos juntados pela instituição financeira evidenciam a existência de relação jurídica entre as partes, bem como a disponibilização do valor contratado em favor da parte apelante.
Ressalto que a recorrente não fez nenhuma contraprova da existência do ilícito que alega. Não obstante a inversão do ônus da prova, cabe a quem alega provar a existência de fato constitutivo de seu direito (art. 373, I, CPC).
Desse modo, não há que se falar em devolução de valores, tampouco indenização por danos morais, isto porque, sendo a contratação realizada de forma livre, afasta a possibilidade de concessão da indenização pretendida, pois inexiste situação de fraude, erro ou coação.
Quanto a pretensão da parte Apelante em ver afastada a condenação por litigância de má-fé imposta, pelo juízo sentenciante, à parte autora e sua advogado, vale tecer alguns esclarecimentos.
Na origem, trata-se de demanda proposta pela parte Apelante, pela qual buscou a declaração da inexistência do contrato de nº 10014397590, já que alega não ter realizado a pactuação.
Sucede que, conforme demonstrado nos autos, a contratação foi regularmente efetuada, conforme instrumento contratual e ted apresentados (ID. 21552768 e ID. 21552770). Assim, sob o fundamento de se tratar de demanda predatório, o juízo sentenciante prolatou pela improcedência do pedido, condenando a parte Autora e a sua causídica ao pagamento das despesas processo e de multa por litigância de má-fé.
Nesse sentido, ressai claramente da exordial que a parte Autora, ora Apelante, postulou buscando, por meio do Poder Judiciário, a alteração da verdade dos fatos. Desse modo, a conduta intencional implementada pela parte Requerente atrai a incidência das hipóteses previstas no art. 80, III, do CPC. In litteris:
Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidente manifestamente infundado;
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
No que versa sobre condenação solidária por litigância de má-fé do advogado da Autora, o parágrafo único do artigo 32 da Lei Federal nº 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil) impõe a necessidade de ação própria para a aferição da existência de atuação conjunta do causídico e da parte para a postulação de lide temerária. Ainda, urge mencionar que o profissional da advocacia não se encontra elencado no rol taxativos (art. 79 do CPC) de agente processual a ser responsabilizado por quaisquer das condutas estipuladas pelo art. 80 do CPC, vejamos:
Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.
Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria.
Para além disso, denota-se da leitura dos dispositivos supramencionados a existência da imunidade relativa aos referidos profissionais, a qual tem como objetivo finalístico a garantia da independência entre a parte Autora e os legisperitos, de modo que os abusos atinentes aos advogados devem ser apurados e reprimidos pelo órgão de classe, no caso a OAB, competindo, assim, ao juízo singular, no momento da prolação, oficiar tal órgão e o Ministério Público.
Neste ponto, portanto, inexistindo previsão legal e jurisprudencial para imposição de multa por litigância de má-fé à advogada, compreende-se que o juízo a quo agiu de forma equivocada ao inovar o ordenamento jurídico. Não é outro o entendimento o entendimento da Corte Cidadã, abaixo transcrito:
CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATO JUDICIAL. EXCEPCIONALIDADE CONFIGURADA. ILEGALIDADE, TERATOLOGIA OU ABUSO DE PODER. ADVOGADO. TERCEIRO INTERESSADO. SÚMULA 202/STJ. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. IMPOSIÇÃO DE MULTA AO PROFISSIONAL. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Fora das circunstâncias normais, a doutrina e a jurisprudência majoritárias admitem a impetração de mandado de segurança contra ato judicial, ao menos nas seguintes hipóteses excepcionais: a) decisão judicial manifestamente ilegal ou teratológica; b) decisão judicial contra a qual não caiba recurso; c) para imprimir efeito suspensivo a recurso desprovido de tal atributo; e d) quando impetrado por terceiro prejudicado por decisão judicial. 2. "As penas por litigância de má-fé, previstas nos artigos 79 e 80 do CPC de 2015, são endereçadas às partes, não podendo ser estendidas ao advogado que atuou na causa, o qual deve ser responsabilizado em ação própria, consoante o artigo 32 da Lei 8.906/1994" (AgInt no AREsp 1.722.332/MT, Relatora Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Quarta Turma, julgado em 13/6/2022, DJe de 21/6/2022). 3. "A contrariedade direta ao dispositivo legal antes referido e à jurisprudência consolidada desta Corte Superior evidencia flagrante ilegalidade e autoriza o ajuizamento do mandado de segurança, em caráter excepcional" (RMS 59.322/MG, Relator Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Quarta Turma, julgado em 5/2/2019, DJe de 14/2/2019). 4. No caso, o Juízo da 1ª Vara da Comarca de Juara, Estado de Mato Grosso, aplicou ao ora recorrente, advogado, diversas multas por litigância de má-fé, nos próprios autos em que o causídico teria praticado as vislumbradas condutas de má-fé ou temerárias, o que é vedado pela norma e pela jurisprudência pacífica do STJ. 5. "A impetração de segurança por terceiro, contra ato judicial, não se condiciona à interposição de recurso" (Súmula 202/STJ). 6. Recurso ordinário provido para conceder a segurança, cassando-se o ato judicial apontado como coator.
(STJ - RMS: 71836 MT 2023/0241576-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 26/09/2023, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/10/2023) (g. n.)
Destarte, reduzo a condenação, adotada pelo juízo sentenciante, por litigância de má-fé em face da parte Autora para 2% (dois por cento) sobre o valor da causa, ao lume do art. 80, III, do CPC, e afasto a imposição ao advogado, já que não há previsão legal para tanto.
IV - DISPOSITIVO
Pelo exposto, conheço do recurso e dou-lhe PARCIAL PROVIMENTO, reformando a sentença para afastar a condenação de litigância de má-fé imposta ao causídico da parte Autora e para reduzir o percentual aplicado à parte Autora para 2% (dois por cento) sobre o valor da causa, mantendo a sentença incólume em seus demais termos.
Transcorrendo in albis o prazo recursal, arquivem-se os autos, dando-se baixa na distribuição.
Advirto às partes que a oposição de Embargos Declaratórios ou a interposição de Agravo Interno manifestamente protelatórios ensejará a aplicação da multa prevista, respectivamente, no art. 1.026, § 2º, e no art. 1.021, § 4º, ambos do CPC.
Intimem-se as partes.
TERESINA-PI, 10 de janeiro de 2025.
0804577-45.2022.8.18.0032
Órgão JulgadorDesembargador JOSÉ WILSON FERREIRA DE ARAÚJO JÚNIOR
Órgão Julgador Colegiado2ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)JOSE WILSON FERREIRA DE ARAUJO JUNIOR
Classe JudicialAPELAÇÃO CÍVEL
CompetênciaCâmaras Cíveis
Assunto PrincipalEmpréstimo consignado
AutorFRANCISCA ISAURA DE MATOS
RéuBANCO FICSA S/A.
Publicação10/01/2025