Decisão Terminativa de 2º Grau

Defeito, nulidade ou anulação 0801627-56.2021.8.18.0078


Decisão Terminativa

 

PODER JUDICIÁRIO 
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ
GABINETE Da DESEMBARGADORA LUCICLEIDE PEREIRA BELO

ORGÃO JULGADOR: 3ª Câmara Especializada Cível

 APELAÇÃO CÍVEL (198) No 0801627-56.2021.8.18.0078

APELANTE: FRANCISCA ARAUJO DO NASCIMENTO

APELADO: BANCO BRADESCO S.A.

RELATOR(A): Desembargadora LUCICLEIDE PEREIRA BELO

 

JuLIA Explica

 

DIREITO DO CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. AUSÊNCIA DE PROVA DA CONTRATAÇÃO E DA TRANSFERÊNCIA DOS VALORES AO CONSUMIDOR. NULIDADE DECLARADA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 18 DO TJPI. REPETIÇÃO DO INDÉBITO EM DOBRO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO PROVIDO.




DECISÃO MONOCRÁTICA



RELATÓRIO 


Vistos.

Trata-se de APELAÇÃO CÍVEL interposta por FRANCISCA ARAÚJO DO NASCIMENTO, contra sentença proferida nos autos da AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE NEGÓCIO JURÍDICO CC REPETIÇÃO DE INDÉBITO CC COM DANOS MORAIS ,  ajuizada em face de BANCO BRADESCO S.A, ora apelado.

Em sentença, o d. juízo de 1º grau julgou improcedente a demanda, COM resolução de mérito, nos seguintes termos:


“(...) Dessa forma, o negócio jurídico consistente em um empréstimo bancário devidamente contratado entre as partes deve ser mantido em todos os seus termos. Diante do exposto, julgo improcedentes os pedidos da inicial para manter incólume o negócio jurídico atacado. Nisso, extingo o presente processo com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I do CPC. Custas e honorários de sucumbência no importe de 10% do valor da causa pela parte requerente, nos termos do art. 85,§2º do CPC, cuja cobrança fica suspensa ante o deferimento da gratuidade da justiça”.


Em suas razões recursais, a parte apelante alegou a invalidade da contratação, uma vez que a parte apelada não houve comprovação da transferência dos valores supostamente contratados. Pugna pelo provimento do recurso, para que seja reformada a sentença e julgados procedentes os pedidos contidos na inicial. 

A parte apelada apresentou contrarrazões pugnando pelo improvimento ao recurso interposto, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Desnecessária a remessa dos autos ao Ministério Público Superior, por não vislumbrar hipótese que justifique sua intervenção, conforme recomendação contida no Ofício Circular n.º 174/2021, da Presidência deste Egrégio Tribunal de Justiça.

É o relatório.


FUNDAMENTAÇÃO

 

REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE

 

Recurso tempestivo e formalmente regular. Preparo recursal não recolhido em virtude da concessão da gratuidade judiciária. Preenchidos os demais requisitos necessários à admissibilidade recursal, CONHEÇO do apelo.

 

MÉRITO


O art. 932 do CPC prevê a possibilidade do relator proferir decisão monocrática para proceder ao julgamento do recurso nas seguintes hipóteses:


Art. 932. Incumbe ao relator:


IV - negar provimento a recurso que for contrário a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;


b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;


c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;



V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; 


b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;


c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;


No presente caso, a discussão diz respeito à existência de comprovação, pela instituição bancária, do repasse dos valores supostamente contratados em favor do consumidor, matéria que se encontra sumulada no Tribunal de Justiça do Piauí, nos seguintes termos:


SÚMULA 18 –  A ausência de transferência do valor do contrato para conta bancária de titularidade do mutuário enseja a declaração de nulidade da avença e seus consectários legais e pode ser comprovada pela juntada aos autos de documentos idôneos, voluntariamente pelas partes ou por determinação do magistrado nos termos do artigo 6º do Código de Processo Civil.


Assim, passo a apreciar o mérito do presente recurso, nos termos do art. 932, V, “a”, CPC. 

Versa a matéria do recurso sobre a suposta irregularidade do contrato discutido, dada a ausência de contrato e a não juntada de TED.

Na atualidade, é comum a celebração de contratos bancários por meio digital, quer por aplicativos, quer através de terminais de autoatendimento, cujas modalidades não implicam em invalidade, pois exigem uso de senha pessoal sigilosa para realização, cotejada com o uso de cartão magnético, de modo que a inexistência de contrato escrito é irrelevante para comprovar o vínculo obrigacional entre as partes nessa modalidade de contratação. Isto porque, tal operação contratual possui regulamentação pela Resolução n. 3.694/2009, do Banco Central do Brasil.

Logo, se houver provas de que houve contratação via terminal de autoatendimento, com uso de cartão e senha pessoal do correntista, não há que se falar em irregularidades na contratação.

Entretanto, justamente nesse ponto, a parte apelante não colacionou aos autos provas suficientes de que a contratação foi efetuada via terminal de autoatendimento, pois não colacionou sequer as telas do seu sistema interno, ou extrato contendo informações relativas ao contrato discutido, contendo o resumo detalhado da operação (dados da proposta, valor do empréstimo, valor da parcela mensal, juros aplicados, etc.), ainda que fosse um documento produzido de forma unilateral, sem assinatura, considerando as peculiaridades da contratação via terminal de autoatendimento.

Assim, considerando que a instituição financeira deixou de apresentar outros elementos probatórios que confirmassem que a operação fora devidamente realizada por meio de terminal de atendimento, há que se reconhecer a invalidade da contratação, com os consectários legais decorrentes.

Deste modo, de todo o conjunto probatório produzido nos autos, vislumbra-se que a Autora apresentou prova mínima do direito que alega, mediante o extrato bancário, comprovando o desconto em sua conta corrente relativo ao contrato em questão, atendendo à regra do art. 373, I, do CPC.

Por outro lado, entende-se que a parte apelada não apresentou prova suficiente de suas alegações, visando demonstrar que realmente houve a contratação do empréstimo por meio do terminal de autoatendimento - "caixa eletrônico", não juntando sequer extrato da conta corrente do apelado do período da celebração do contrato, deixando de cumprir com o ônus previsto no art. 373, II, do CPC, no sentido de demonstrar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

A propósito, colaciona-se:


EMENTA: AÇÃO DE COBRANÇA - EMPRÉSTIMO BANCÁRIO - CELEBRAÇÃO POR MEIO DE TERMINAL DE AUTOATENDIMENTO - USO DE CARTÃO E SENHA - APRESENTAÇÃO DE CONTRATO FÍSICO - DESNECESSÁRIA - FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO DO AUTOR - DÍVIDA COMPROVADA - AUSÊNCIA DE QUITAÇÃO. 1. É do autor o ônus de comprovar os fatos constitutivos de seu direito, conforme prevê o artigo 373, I, do CPC/2015. 2. Tratando-se de contrato eletrônico, celebrado em terminal de autoatendimento mediante o uso de cartão e senha, se faz desnecessária a apresentação de contrato físico, bastando a juntada de documentos que demonstrem os dados da negociação, assim como os encargos incidentes. (TJ-MG - AC: 10000211582291001 MG, Relator: José Américo Martins da Costa, Data de Julgamento: 28/01/2022, Câmaras Cíveis / 15ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 03/02/2022).


Nessa linha de entendimento, mutatis mutandis, não tendo o banco apelado acostado documentos que demonstrem os dados da negociação, assim como os encargos incidentes, não resta comprovada a contratação por meio de terminal de autoatendimento, mediante uso de cartão e senha.

Por conclusão lógica, inexistindo provas da contratação via terminal de autoatendimento, o pedido deduzido na inicial é procedente, devendo ser reformada a sentença, para que seja declarada a nulidade do contrato e condenado o banco apelado a reparar os danos materiais (repetição do indébito) e morais sofridos pela autora, pela falha na prestação de seus serviços.

Acerca da repetição em dobro, o Colendo STJ fixou a seguinte tese, no julgamento do EAREsp nº 676.608/RS: “A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida consubstancia conduta contrária à boa-fé objetiva” .

Contudo, a Corte Especial do STJ decidiu modular os efeitos da tese, restringindo a eficácia temporal dessa decisão, ponderando que, na hipótese de contratos de consumo que não envolvam a prestação de serviços públicos, o entendimento somente poderia ser aplicado aos débitos cobrados após a data da publicação do acórdão paradigma (EAREsp nº 676.608/RS), em 30/03/2021.

Porém, na sessão presencial por videoconferência realizada em 14 de agosto de 2024, no julgamento do Processo nº 0800432-52.2020.8.18.0084, em regime de ampliação de quórum, fui vencida em meu entendimento.

Assim, em razão dos precedentes desta 3ª Câmara Especializada Cível e do princípio da colegialidade, entendo que a repetição deve ocorrer integralmente em dobro.

No que tange aos prejuízos imateriais alegados, o desconto indevido pode gerar danos morais, bastando para isso que o consumidor seja submetido a um constrangimento ilegal, como a cobrança de valores atinentes a um contrato nulo, bem como por tratar-se de dedução efetuada em verba de caráter alimentar. 

Ademais, na hipótese dos autos, é certo que o dever de indenizar resulta da própria conduta lesiva evidenciada, independente de prova dos abalos psíquicos causados, pois, em casos tais, o dano é in re ipsa, isto é, decorre diretamente da ofensa, por comprovação do ilícito, que ficou sobejamente demonstrado nos autos. 

O próprio STJ firmou entendimento no sentido de que “a concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato de violação (damnum in re ipsa). Verificado o evento danoso surge a necessidade de reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa)” (RT 746/183, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4ª Turma). 

A respeito da temática, existem diversos julgados dos Tribunais Pátrios (verbi gratia, TJMS:  AC nº 0802134-57.2019.8.12.0012, Rel. Des. Vilson Bertelli, 2ª Câmara Cível, j. 27/07/2020; e TJCE: APL nº 0000783-69.2017.8.06.0190, Rel. Des. Raimundo Nonato Silva Santos, 4ª Câmara de Direito Privado, j. 12/11/2019). 

Por estas razões, com esteio na prova dos autos, entendo ser devida a reparação por danos morais, em função das ações lesivas praticadas pela instituição financeira demandada. 

Em continuidade, na fixação da indenização por danos morais, o magistrado deve agir com equidade, analisando a extensão do dano, as condições socioeconômicas e culturais dos envolvidos, as condições psicológicas das partes e o grau de culpa do agente, terceiro ou vítima. Tais critérios podem ser retirados dos artigos 944 e 945, ambos do CC, bem como do entendimento dominante do STJ. 

Pacífico também o entendimento a respeito do caráter dúplice (compensatório/pedagógico) da indenização por danos morais, devendo o julgador, quando da sua fixação, se guiar pelas circunstâncias do caso concreto e pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de modo que seu valor não seja excessivo a ponto de gerar enriquecimento ilícito do ofendido, tampouco irrisório para estimular a prática danosa, sob pena de desvirtuamento da natureza do instituto do dano moral.

Vale dizer, deve ser quantia que não seja insignificante, a ponto de não compor o sentimento negativo experimentado pela vítima, e que não seja tão elevada, a ponto de provocar o seu enriquecimento sem causa.  

Portanto, para que o arbitramento atenda aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a orientação de nossos Tribunais exige que seja feito a partir de dois dados relevantes, quais sejam, o nível econômico do ofendido e o porte econômico do ofensor, ambos cotejados com as condições em que se deu a ofensa. 

Com efeito, considerando-se as condições das partes, o valor da indenização deve ser compatível com a expressão econômica e com o grau de culpa observado no ato, evidenciada, no caso, pela instituição financeira que realizou descontos no benefício previdenciário da parte autora sem qualquer lastro contratual válido. 

Nestas condições, apreciadas todas as questões postas, entendo que deve ser fixada a título de indenização do dano moral, a quantia de R$ 3.000,00 (três mil reais), valor que atende aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, levando-se em consideração a realidade das partes, a situação econômica e as particularidades do caso.  


DISPOSITIVO 

 

Ante o exposto, conheço do recurso, para reformar a sentença e DAR PROVIMENTO aos pedidos iniciais para: 

a) CANCELAR o contrato discutido nos autos; 

b)CONDENAR a empresa ré a restituir, de forma dobrada, os descontos efetuados na conta corrente da autora, a ser apurado por simples cálculo aritmético, com correção monetária nos termos da Tabela de Correção adotada na Justiça Federal (Provimento Conjunto n° 06/2009 do Egrégio TJPI), acrescentado o percentual de juros de mora de 1% ao mês, atendendo ao disposto no art. 398, do Código Civil vigente, ambos os termos a serem contados da data de cada desconto indevido (súmulas 43 e 54 do STJ).

c) CONDENAR a parte ré a pagar o valor de R$ 3.000,00 (três mil reais), com os devidos acréscimos legais, a título de indenização por danos morais. Sobre o valor deve-se aplicar a correção monetária nos termos da Tabela de Correção adotada na Justiça Federal (Provimento Conjunto nº 06/2009 do Egrégio TJPI), a contar da data de publicação desta sentença (Súmula 362, STJ), e acrescentado o percentual de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a contar do evento danoso, qual seja, a data da contratação fraudulenta, atendendo ao disposto no art. 398, do Código Civil vigente, e ao entendimento da Súmula 54, STJ.

Invertidos os ônus sucumbenciais, condeno o banco requerido ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação. 

Preclusas as vias impugnativas, dê-se baixa na distribuição, com a consequente remessa dos autos ao juízo de origem.


Teresina, 10 de janeiro de 2025.

Desembargadora LUCICLEIDE PEREIRA BELO 

Relatora

 

(TJPI - APELAÇÃO CÍVEL 0801627-56.2021.8.18.0078 - Relator: LUCICLEIDE PEREIRA BELO - 3ª Câmara Especializada Cível - Data 13/01/2025 )

Detalhes

Processo

0801627-56.2021.8.18.0078

Órgão Julgador

Desembargadora LUCICLEIDE PEREIRA BELO

Órgão Julgador Colegiado

3ª Câmara Especializada Cível

Relator(a)

LUCICLEIDE PEREIRA BELO

Classe Judicial

APELAÇÃO CÍVEL

Competência

Câmaras Cíveis

Assunto Principal

Defeito, nulidade ou anulação

Autor

FRANCISCA ARAUJO DO NASCIMENTO

Réu

BANCO BRADESCO S.A.

Publicação

13/01/2025